A receita clássica de um carbonara é simples, mas objetiva. É feita com espaguete, guanciale (a bochecha do porco), pimenta-do-reino, queijo pecorino romano e ovos batidos. Há quem use parmesão ou grana padano. Ou substitua o espaguete por outras massas, como rigatoni ou bucatini (a variedade longa com um furinho no meio). Qualquer alteração, no entanto, é vista como uma afronta à tradição e aos métodos centenários de preparo nascidos na Itália e compartilhados por gerações. Se non è vero, è ben trovato, como diriam os oriundi. Contudo, em postura provocativa, Alberto Grandi, professor de história da alimentação em Parma, vai na contramão e alerta: as receitas das vovós seriam muito mais recentes do que se imaginava, e a gastronomia da bota se alimentaria de marketing. Eis o argumento seminal de As Mentiras da Nonna (Editora Todavia), resultado de amplo mergulho sobre registros antigos de forno e fogão. Uma descoberta em forma de anátema: o carbonara é uma receita americana que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. Trata-se do clássico café da manhã ianque, com ovos e bacon, que recebeu a adição da massa.
A obra, originalmente lançada em 2018 e que vem sendo atualizada, inclusive com a criação de um podcast, nasceu com o interessante título de Denominazione di Origine Inventata, uma brincadeira com as tradicionais Denominações de Origem que regem vinhos e acetos balsâmicos, mas também tomates e embutidos. Há uma enorme variedade de outros exemplos. O tiramisu, sobremesa apreciada no mundo inteiro, só apareceu nos livros de cozinha em meados da década de 1980, e seu principal ingrediente, o queijo mascarpone, dificilmente era encontrado fora de Milão até os anos 1960. O panetone, então, vinha com massa fina que recebia um punhado de uvas passas. Era comida da população mais pobre, sem relação com o Natal. A receita conhecida hoje, com o formato característico, estufado, foi inventada por Angelo Motta, dono de uma indústria alimentícia milanesa, nos anos 1920. O sucesso fez com que muitos copiassem o modelo, em sucessivas reconstruções.
As revelações do volume ajudam a recriar a cultura do paladar. Funcionam como lupa para o cotidiano de uma nação. O resultado, depois de o véu ter sido levantado: Grandi, em tom de séria brincadeira, diz ter de sair cercado por agentes de segurança, dado a raiva que atraiu de conterrâneos que vivem do bem comer e da tradição. “Contar a aventura dos pratos italianos como eles realmente nasceram é fundamental, porque nos permite entender que o fator mais relevante para o sucesso não é a conservação, mas a inovação”, disse Grandi a VEJA. Dito de outro modo: é tolice levar o fio da meada para muito longe na linha do tempo, como se apenas o passado e os velhos hábitos importassem. O melhor caminho é enxergar a comida como resposta a momento de crises econômicas e guerras, de mãos dadas com a civilização que pretende respirar. Pratos, sim, inventam um tempo, são capazes de gerar identidades nacionais. O bem comer, portanto, foi um modo de a Itália renascer depois de episódios destruidores como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Nessa trilha, criaram lendas, ao modo de quem conta um conto aumenta um ponto, para fincar raízes profundas — que Grandi, agora, revela terem um tanto de fake news. Deu-se a propagação dos mitos com os imigrantes que se espalharam pelo mundo, como nos Estados Unidos e no Brasil, levando na bagagem receitas supostamente centenárias, depois adaptadas aos novos endereços na diáspora (e viva a pizza paulistana).
Mas atenção, como exceção que confirma a regra das lorotas que nos contam: nem tudo é invenção. Há receitas tradicionais de verdade. O exemplo mais marcante é o do creme zabaione, que se manteve praticamente estável desde o século XV. No entanto, vale a lição agora ensinada: a reciclagem é crucial. “A culinária italiana fez sucesso no mundo quando foi renovada”, diz Grandi. É ponto central, desde que não se perca o sabor, sem o qual tudo se perde. Bom apetite.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916