No começo dos anos 2000, a vinícola Miolo separou um espaço em seus vinhedos na Campanha Meridional, no Rio Grande do Sul, para a plantação de castas portuguesas. A empresa escolheu variedades das regiões do Dão e do Douro, como touriga nacional e tinta roriz, e a branca alvarinho, usada na produção dos vinhos verdes no norte de Portugal. Na época, a decisão foi vista com certa desconfiança, já que ainda não se sabia como elas se comportariam no solo gaúcho. Foi preciso paciência, além do trabalho meticuloso de profissionais como o enólogo português Miguel Almeida, que veio ao Brasil no início da carreira e aqui ficou. Agora, vinte anos depois, as castas atingiram todo o seu potencial, e o bom desempenho inspirou outros europeus a desembarcar no país.
A persistência do enólogo português é o retrato de um fenômeno que começa a ganhar corpo agora, exemplo de um movimento interessantíssimo. Cada vez mais, estrangeiros trazem os conhecimentos de vinificação na bagagem e os adaptam para a realidade climática brasileira, muito diferente da europeia (veja o quadro). Foi preciso, no entanto, ir contra o senso comum. Quando Almeida veio para cá, seus colegas de universidade preferiram viajar aos Estados Unidos, Austrália e Chile, países com maior tradição. Mas, imbuído de uma nova experiência, ele provou nossos vinhos e gostou. O preconceito, inclusive em solo brasileiro, não era justificado. “Acredito no terroir, e ele realmente muda com o clima”, diz Almeida. “Mas o homem pode interpretá-lo de modo a tirar o máximo de qualidade dos terrenos.”
O exemplo do lusitano está longe de ser o único. A trajetória do francês Philippe Mével, enólogo-chefe da Chandon, ilustra de forma clara a mistura de tradição e experiência com senso de oportunidade e afeição ao desafio. Mével veio para o Brasil no fim de 1989, às vésperas da safra de 1990, com a missão de terminar o trabalho de seu antecessor, que havia pedido demissão, e contratar um técnico local. A previsão era passar seis meses aqui. Mas ele gostou do que encontrou e também decidiu ficar. Nos últimos trinta anos, Mével ajudou a consolidar a produção de espumantes na Serra Gaúcha.
Evidentemente, nem tudo são flores. A evolução, como todo aprendizado, sobretudo ao lidar com a natureza, pressupõe imensas dificuldades, embora contornáveis. Variedades como o riesling itálico se adaptaram facilmente. Outras, como o pinot noir e o chardonnay, nem sempre amadureciam o suficiente para ser usadas em vinhos finos. Mas funcionavam no corte dos espumantes. Os séculos de experiência e a qualidade dos insumos europeus foram fundamentais. “Na Europa, temos acesso às melhores técnicas, equipamentos e materiais vegetais, como mudas e clones”, diz Mével.
Beber conhecimento dos grandes vinhos franceses, considerados os de maior qualidade do planeta, é vital. Essa é a receita seguida por Jean Claude Cara, cavista franco-brasileiro e especialista em marcas da Borgonha. Além de produzir o próprio vinho, o Elephant Rouge, em Santa Catarina, em safras extraordinárias, Cara mantém uma cave com mais de 6 000 garrafas, todas raríssimas. Algumas podem custar pequenas fortunas, mas são cruciais para o seu processo de aprendizado. “Infelizmente, é preciso ter uma condição socioeconômica elevada para ter acesso aos grandes rótulos”, diz Cara. Nem sempre, porém, é necessário cruzar oceanos. Para muitos produtores brasileiros, a inspiração tem vindo de países como o Chile e a Argentina. A proximidade geográfica e o acesso a bons produtos dessas regiões a preços razoáveis podem ajudar nesse processo. Antes totalmente desacreditados, os vinhos e o terroir brasileiro agora têm seu valor.
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766