Desde que começou a ser celebrado no cenário da gastronomia internacional, o chef argentino Francis Mallmann cultivou uma imagem sedutora. Com suas técnicas de preparo de carnes no fogo, ao ar livre, trouxe um elemento inusitado para o churrasco. Mais recentemente, passou a levantar a bandeira dos vegetais e frutas grelhados nas chamas, algo pouco usual entre cozinheiros estrelados. Para quem não acompanha sua trajetória, parece apenas uma jogada de marketing. Pode até ser isso, mas não só. Em seu novo livro, Fogo Verde (Companhia das Letras), Mallmann assegura que abrir mão da carne — ao menos em algumas refeições — é uma forma de se conectar com o público jovem, mais preocupado com a sustentabilidade e o futuro do planeta. A virada de Mallmann é prova inegável de que os grandes chefs são capazes de se reinventar constantemente, atentos às transformações do mercado e às mudanças nas preferências do público.
A decisão de tirar a carne das receitas é pragmática. “Eu recebia centenas de milhares de mensagens de pessoas que diziam adorar a minha cozinha e meu estilo de cozinhar, mas não comiam carne”, disse Mallmann a VEJA. “Achei que devia algo a essa gente.” Era a oportunidade que esperava para refletir sobre o consumo de alimentos. “O mundo está mudando”, afirma. “Devemos deixar de matar tantos peixes, é preciso repensar a forma desastrosa como o frango que comemos é produzido.” Hoje em dia, o argentino engrossa movimentos afeitos à nova era ambiental, como a luta contra a criação em larga escala de salmão em cativeiro, e diz que todo chef é um pouco ativista.
Mallmann é exemplo de um movimento crescente no panteão dos grandes cozinheiros que passaram a incorporar novos elementos no preparo dos alimentos, mas sem perder o reconhecimento. O suíço Daniel Humm se consolidou como o responsável pelo Eleven Madison Park, restaurante em Nova York que foi considerado o maior templo da alta gastronomia pelos críticos. Em 2017, o espaço recebeu três estrelas no Guia Michelin e ocupou a primeira posição no ranking dos principais destinos gastronômicos do planeta. Ainda assim, quase faliu na pandemia, mas Humm reergueu o restaurante com um menu à base de vegetais. A decisão foi considerada ousada, mas rendeu frutos — o Eleven Madison Park se tornou o primeiro estabelecimento do mundo a conquistar três estrelas no guia francês servindo apenas vegetais. De acordo com Humm, a virada foi feita para valorizar a sustentabilidade na cadeia de fornecimento e servir de exemplo para outros chefs no mundo.
Os brasileiros seguem a mesma tendência. Após desistir da carreira no mercado financeiro, o agora chef Luiz Filipe Souza tornou-se discípulo de Salvatore Loi, que comandou o restaurante Fasano. Souza passou dez anos na cozinha do luxuoso hotel e acompanhou Loi em outros empreendimentos bem-sucedidos. Com o passar do tempo, ganhou sólida base de culinária italiana. Ao abrir o restaurante Evvai, adicionou elementos brasileiros e tornou-se reconhecido como um dos grandes nomes da alta gastronomia nacional, com duas estrelas no Guia Michelin. Além do repertório sofisticado, a receita de sucesso de um grande chef passa pela capacidade de se reinventar, mas sem deixar de lado sua própria assinatura.
“Não podemos destruir o planeta”
Poucos chefs sul-americanos ganharam tanto destaque na alta gastronomia internacional quanto o argentino Francis Mallmann. Premiado pelo Guia Michelin por suas carnes suculentas, Mallmann agora está numa cruzada para valorizar os vegetais. Confira na entrevista a seguir.
A sociedade comerá menos carne no futuro próximo? Não tão cedo. Vamos certamente ter regras mais eficientes para medir a rastreabilidade e controlar o tratamento do gado de corte. Além disso, há projetos muito interessantes de produção de carne em laboratório a partir das células dos animais, depois cultivadas com proteínas, açúcares e gordura. Eu mesmo ajudo uma empresa de Singapura a desenvolver a produção de carne de frango dessa maneira.
Ela é tão saborosa quanto a verdadeira? Não. Mas a tecnologia é rápida e sabemos que logo avançará. Com a carne de laboratório, se perde o romance, sem dúvida. Mas o planeta está destruído, e nosso dever é zelar por ele. São alternativas que provocam imensa transformação. Temos de ouvir os desobedientes.
O senhor é um desobediente? Claro. Temos de quebrar regras e mudar, senão morremos na comodidade e na rotina. Ser desobediente nos mantém vivos.
O senhor foi pioneiro em mostrar as técnicas do fogo ao ar livre. Agora, há muitos outros chefs que citam seu trabalho como inspiração. É algo muito lindo. Fico contente porque sinto que nossa linguagem de cozinha tem uma voz forte e universal. Quando comecei, nos anos 1990, muitos riam de mim. Mas eu, com meus ferros, madeiras e fogos ao ar livre, acreditava naquilo que fazia.
Qual o futuro da gastronomia? Com certeza não serão mais as tendências que duram anos ou décadas. Acredito em algo multifacetado. Os jovens, novamente eles, estão muito mais bem informados. E sabem quando algo é verdadeiro ou não.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905