O crescimento explosivo do movimento vegano nos últimos anos fez com que os consumidores de carne se tornassem alvo de um novo tipo de preconceito. Algumas modalidades em especial, como a famosa parrilla argentina e uruguaia, foram durante muito tempo consideradas inadequadas para paladares sofisticados. Agora, porém, essa antiga — e injusta — percepção começa a mudar. Apreciada nos países vizinhos, a parrilla vem garantindo espaço entre os amantes de carnes bem aqui no Brasil, o país do tradicionalíssimo churrasco gaúcho.
As diferenças entre a parrilla e o churrasco não são tão sutis quanto se poderia imaginar à primeira vista (veja o quadro). Começam na ferramenta usada para grelhar as carnes e chegam ao cortes, passando pela forma como se salga as peças e sobre qual lenha é escolhida para fazer a brasa. No caso da parrilla, a madeira, quase sempre de árvores frutíferas, queima numa caixa ao lado da grelha. Ao ficar incandescente, é puxada para baixo dela, que se move para regular a distância do calor — o segredo é evitar o fogo direto. Na parrillada, os cortes fogem da nossa tradição, como o vacío, o ancho, o chorizo, o bife de tira. Os bifes são menores e mais finos, e o espeto está fora de cogitação. Aproveita-se tudo do animal, inclusive os miúdos. Sal, só o médio. Como resultado de todo esse capricho, as carnes são mais macias e suculentas.
São vantagens que reinventaram o modo de consumo. A parrilla é, cada vez mais, apreciada em jantares românticos, além de embalar encontros de amigos e familiares. Agora, ela chega ao seu ápice com ofertas de refeições exclusivas, cardápios preparados sob medida, cursos de curta duração para admiradores e até uma gama de ferramentas específicas para a prática.
O fenômeno ganhou impulso com a renovação do gado no Brasil e a introdução de cabeças com sangue europeu, cuja carne marmorizada tem a gordura mais bem distribuída entre as fibras. “O brasileiro entendeu que temos, sim, carnes de qualidade”, diz a chef e consultora gastronômica Paula Labaki. A popularização das viagens para Argentina e Uruguai, países que ficaram mais acessíveis aos turistas, também trouxe novos ares para a gastronomia brasileira.
Como efeito direto desse processo, as churrascarias foram, pouco a pouco, sendo substituídas pelas parrillas ou as absorveram em seus cardápios. Com isso, ganharam força novas experiências gastronômicas, combinando o ritual da reunião em volta do braseiro, a degustação das carnes e a harmonização com cervejas ou vinhos.
O alto preço das carnes certamente atrapalhou a tendência das parrillas, até por causa dos cortes diferenciados, que são, em geral, mais caros. Mas o consumidor brasileiro, que não vive sem proteína e sempre busca novidades, encontrou caminhos para driblar os obstáculos. Segundo Alan Edelstein, ex-executivo do setor industrial e sócio do restaurante Rincon Escondido, em São Paulo, seus clientes têm preferido experiências menos frequentes, porém mais intensas. O estabelecimento que ele, um filho de uruguaios, administra desde 2015 com o sócio argentino, Francisco Mancuso, oferece jantares mensais para uma confraria de sócios formada por 45 pessoas, que se reúnem para desfrutar principalmente os prazeres da parrilla. Ele também promove cursos com a presença de chefs especializados, que dão dicas sobre a melhor maneira de preparar a carne. “Com isso, conseguimos manter a demanda”, afirma Edelstein.
A parrilla começa até a ocupar lugar de destaque em um clássico brasileiro: os botequins, que de uns tempos para cá passaram a reforçar o seu portfólio carnívoro. É o caso do Chimichurri Parrilla, também em São Paulo, que oferece entradas de miúdos e sanduíches de carne feita na parrilla, que por essa razão passou a atrair uma legião de fãs. Em boa parte desses endereços, a grelha onde se preparada a parrilla é a alma do lugar, mais até do que o cardápio de cervejas.
Apesar do recente fenômeno de interesse, a carne enfrenta desafios no Brasil. Além do movimento vegano, a disparada de preços é um problema. Segundo a Consultoria Agro, ligada ao Itaú BBA, o consumo vem caindo há três anos consecutivos. Em 2020, recuou 10% em relação ao anterior. Em 2021, a estimativa é queda de 2%. Diante de dados como esses, chama ainda mais atenção o ótimo momento da parrilla. Para seus apreciadores, a carne nunca foi tão forte.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774