Entre todos os restaurantes estrelados e comandados por chefs de fama internacional, o endereço mais cobiçado da França hoje é um bufê em que os comensais pagam uma taxa fixa de 53 euros para comer à vontade. As bebidas são cobradas à parte, mas sem os valores extorsivos esperados em casas de renome. A grande inteligência do menu do Les Grands Buffets, no sudoeste do país, a 800 quilômetros de Paris, é a atenção com a gastronomia gaulesa clássica. Há receitas tradicionais, como o boeuf bourguignon. Há outras, menos conhecidas, mas perenes, como lièvre à la royale, lebre inteira refogada e servida com um molho feito de coração, fígado, pulmões e sangue, além de outros itens essenciais para uma experiência primordial, como escargots e patas de rã.
Nada da leveza etérea da nouvelle cuisine. Nada de concessões a pratos estrangeiros. Em um dos ambientes, há uma enorme torre de sete andares com lagostas frescas, e a seleção de queijos, com 111 variedades, foi certificada pelo Guinness como a maior do mundo. Para conseguir uma mesa é preciso fazer uma reserva com seis meses de antecedência. Quem visita o lugar costuma gostar tanto que repete a reserva, indicam os levantamentos da casa. “É o maior teatro gastronômico do planeta”, diz o chef Michel Guérard, sem falsa modéstia.
O sucesso do empreendimento não é evento solitário. Ele revela um novo momento em que a França tem olhado para o passado de sua rica história alimentar em busca de reafirmação global. E sejamos claros: ninguém nega o papel fundamental que os grandes cozinheiros franceses tiveram na história da gastronomia. Não à toa, técnicas até hoje recebem nomes franceses, como os cortes julienne (em tiras) e brunoise (em cubos), o bouquet garni, o ramo de temperos usados em uma variedade de receitas, etc. O conhecimento produzido sobre forno e fogão estabeleceu os padrões de excelência, desenvolveu processos e criou um vasto repertório de preparos.
Até o sistema de pontuação por estrelas, popularizado pelo renomado Guia Michelin, tornou-se símbolo de qualidade. Alguns de seus maiores chefs tornaram-se lendas, como Joël Robuchon (1945-2018), eleito o “chef do século” pelo guia Gault&Millau e detentor de 31 estrelas Michelin em 2016 em todos os seus empreendimentos, um recorde até hoje imbatível. Mas nas últimas décadas o país perdeu um pouco da hegemonia no Olimpo da gastronomia. Desde meados dos anos 1990, a Espanha assumiu uma posição de destaque, graças a chefs que desenvolveram técnicas moleculares que definiriam os rumos do que seria considerado moderno dali em diante. Mais recentemente, o Peru vem recebendo os holofotes por apresentar uma cozinha centrada em ingredientes únicos.
A França precisaria retomar a tocha, por orgulho e para deleite internacional — e lembre-se que nas primeiras posições do mais recente ranking elaborado pelo The World’s 50 Best Restaurants, divulgado em 2023, há apenas um endereço francês, o Table by Bruno Verjus, em décimo lugar, apenas duas posições à frente de A Casa do Porco, em São Paulo. A fama do Les Grands Buffets, do empresário Louis Privat, é, portanto, uma forma de retomar a honra francesa. Segundo Privat, a gastronomia sofreu com a globalização e mesmo os grandes restaurantes e chefs perderam a identidade nacional. Consumidores mais jovens não conhecem as receitas clássicas, e há uma influência crescente dos imigrantes nos hábitos alimentares. Hoje, 10% da população francesa é composta de pessoas que deixaram seu país de origem. Não há nada de errado, ao contrário, em aprender a riqueza que existe na diversidade e, assim, consumir cuscuz marroquino ou thieboudienne (arroz com peixe, muito comum no Senegal).
O jogo, porém, começa a mudar. O Michelin, em sua edição mais recente, acaba de conceder as cobiçadas três estrelas, para o jovem chef Fabien Ferré, que comanda o Table du Castellet, na região da Provença, clássico até o último fio de cabelo. Foi a primeira vez, aliás, que alguém tão jovem recebeu o reconhecimento máximo de uma única vez. “Não sou bom em discursos, mas sou melhor na cozinha”, disse ele ao receber a premiação, sem falsa modéstia. Como Paris sediará os Jogos Olímpicos, ímã de olhares mundiais, é natural o marketing em reconhecer o trabalho da mocidade que valoriza as raízes francesas.
Mas é postura com horizonte muito mais vasto. O presidente Emmanuel Macron anunciou recentemente um programa de instalação de cozinheiros noviços no exterior, de modo que possam aprender outras culinárias, mas sobretudo de maneira a exportar uma arte inigualável, lendária mesmo. É o soft power em andamento, o paladar como diplomacia. Costuma funcionar. Fica, portanto, a célebre dica de Joël Robuchon, transformada em mantra: “Não podemos cozinhar se não gostamos de pessoas”. Assim é a vida.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889