Especialista demonstra por que a liminar do STF suspendendo tramitação de projeto que coíbe novos partidos é constitucional e respeita jurisprudência do tribunal. Conforme se havia afirmado aqui
Pois é… Não fiz faculdade de direito, não, ué, como todo mundo sabe, mas sou um senhor disciplinado. Procuro estudar o que não sei, procuro ler, me instruir. E acho que o direito é coisa importante demais para ficar restrito apenas aos especialistas em… direito! Operá-lo, não posso nem quero: não poderia se quisesse; não […]
Pois é… Não fiz faculdade de direito, não, ué, como todo mundo sabe, mas sou um senhor disciplinado. Procuro estudar o que não sei, procuro ler, me instruir. E acho que o direito é coisa importante demais para ficar restrito apenas aos especialistas em… direito! Operá-lo, não posso nem quero: não poderia se quisesse; não quereria se pudesse. Opinar? Ah, isso eu posso, o que deixa muita gente desnecessariamente brava. Quando escrevi, faz tempo, que julgava não haver mais embargos infringentes, houve quem se escandalizasse. Talvez o tribunal, por maioria, não por unanimidade, diga o contrário. Mas o tema será discutido e se terá de deliberar a respeito. E só será assim porque a questão existe. Já escrevi muito sobre o assunto. Se o Supremo seguisse o Supremo nesse particular, já demonstrei, nada de embargos infringentes.
No caso da liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes suspendendo a tramitação do projeto de lei que coíbe a formação de novos partidos, também foi um deus nos acuda. Contestei os que afirmaram que ela é descabida. Quando um professor de direito da USP referendou a posição desses críticos, vieram pra cima: “E agora? O que você vai dizer?”. Ora, digo que ele está errado porque foi outra coisa que li na jurisprudência do tribunal. Não há medalhão desse mundo que me faça negar um fato.
Pois bem… Neste sábado, Eliardo Teles Filho publica um longo artigo no site Consultor Jurídico em que demonstra, com mais precisão técnica do que eu — ele é advogado, especialista na área, eu não sou —, que o STF detém o controle de constitucionalidade formal e material do processo legislativo. Ou por outra: pode intervir nos casos em que tanto o procedimento como o conteúdo de um projeto de lei ou emenda firam disposições constitucionais. Além de advogado, Teles Filho é professor de direito do Centro Universitário de Brasília e doutorando em direito pela École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, de Paris.
Ele também deixa claro que o Supremo já decidiu, na ADI 2.797, de que foi relator o então ministro Sepúlveda Pertence, que norma cujo objetivo imediato seja ignorar ou desrespeitar prévia interpretação do STF é inconstitucional. Vale dizer: quando o tribunal decide segundo uma interpretação conforme a Constituição, tal decisão não pode ser mudada por projeto de lei. E não pode, acrescento (e já escrevi a respeito), porque tal interpretação se transforma, para todos os efeitos, em dispositivo constitucional.
O texto também evidencia a legitimidade dos parlamentares — segundo jurisprudência do Supremo — para impetrar mandados de segurança contra a tramitação de projetos e emendas no Congresso. Reproduzo, abaixo, trecho do artigo. Leia a íntegra do artigo na seção Documentos do blog.
(…)
A natureza dúplice – de limitação material/procedimental – das nossas cláusulas pétreas impõe ao julgador de um mandado de segurança impetrado contra tramitação de PEC inconstitucional uma análise de fundo do texto do projeto de lei para decidir sobre a possível inconstitucionalidade da tramitação. Não há como, nesse caso, verificar se houve violação ao art. 60, § 4º sem comparar o conteúdo da PEC com o da Constituição. É aqui que a previsão constitucional das cláusulas pétreas cruza o controle da constitucionalidade material do texto com o controle de constitucionalidade formal do processo legislativo. Foi, talvez, por desconsiderar essa peculiaridade do constitucionalismo brasileiro que, em recente artigo, o professor Virgílio Afonso da Silva , da Universidade de São Paulo, estranhou o deferimento de liminar no MS 32.033.
Partindo desse princípio, tomemos o PL 4.470, objeto do MS 32.033, para verificar se o seu conteúdo justificaria suspender o seu trâmite via mandado de segurança.
O Projeto de Lei 4.470 contém dois artigos alterando três dispositivos das leis 9.096/95 e 9.504/97, Lei dos Partidos e Lei das Eleições, respectivamente.
Os atuais art. 29, § 6º, e 41-A, da Lei 9.096/95, têm a seguinte redação:
“Art. 29. Por decisão de seus órgãos nacionais de deliberação, dois ou mais partidos poderão fundir-se num só ou incorporar-se um ao outro.
“§ 6º Havendo fusão ou incorporação de partidos, os votos obtidos por eles, na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, devem ser somados para efeito do funcionamento parlamentar, nos termos do art. 13, da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão.”
“Art. 41-A. 5% (cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral e 95% (noventa e cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão distribuídos a eles na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados”.
Com essa redação, a participação dos partidos no rateio dos 95% do fundo depende da representação que eles obtiveram nas últimas eleições. Ocorre que, conforme interpretação do Supremo Tribunal Federal veiculada na ADI 4.430, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, essa distribuição dos recursos do fundo partidário não se aplica aos partidos criados, fundidos ou incorporados após as últimas eleições.
Ora, o PL pretende alterar as redações dos dois dispositivos, justamente para afastar a interpretação que o STF lhes deu naquela ocasião. A nova redação passaria a ser assim: “Art.29 (…)
§ 6º Havendo fusão ou incorporação, devem ser somados exclusivamente os votos dos partidos fundidos ou incorporados, obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão.” (NR)
“Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário:
I – 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral; e
II – 95% (noventa e cinco por cento) serão distribuídos aos partidos na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II, serão desconsideradas as mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto no § 6º do art. 29.”
A partir dessa alteração, os novos partidos não mais entrariam no rateio dos 95% do fundo partidário, mas apenas nos 5% destinados aos partidos sem representação na Câmara dos Deputados. Além disso, para os partidos resultantes de fusão ou incorporação, a adesão de novos deputados não seria computada para a distribuição do Fundo Partidário ou do tempo de propaganda política.
Mas o PL altera ainda a Lei das Eleições, inserindo um §7º no seu art. 47, com o objetivo de alterar a interpretação dada ao §2º, II, do mesmo artigo, cuja redação atual é a seguinte:
Art. 47. As emissoras de rádio e de televisão e os canais de televisão por assinatura mencionados no art. 57 reservarão, nos quarenta e cinco dias anteriores à antevéspera das eleições, horário destinado à divulgação, em rede, da propaganda eleitoral gratuita, na forma estabelecida neste artigo.
(…)
§ 2º Os horários reservados à propaganda de cada eleição, nos termos do parágrafo anterior, serão distribuídos entre todos os partidos e coligações que tenham candidato e representação na Câmara dos Deputados, observados os seguintes critérios:
(…)
II – dois terços, proporcionalmente ao número de representantes na Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os partidos que a integram.
Mas a interpretação desses dispositivos foi objeto de análise de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal em 29 de junho de 2012, há menos de um ano, portanto. A decisão da Corte, relatada pelo Ministro Dias Toffoli, foi a seguinte:
i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “e representação na Câmara dos Deputados” contida na cabeça do § 2º do art. 47 da Lei nº 9.504/97;
ii) dar interpretação conforme à Constituição Federal ao inciso II do § 2º do art. 47 da mesma lei, para assegurar aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral no rádio e na televisão, considerada a representação dos deputados federais que migrarem diretamente dos partidos pelos quais foram eleitos para a nova legenda na sua criação.
Com essa decisão, garantiu-se, aqui também, que os partidos criados no curso de uma legislatura participassem, na proporção dos deputados que a ele aderiram, da distribuição do tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão.
Ora, o §7º que o PL pretende inserir nesse mesmo artigo tem o seguinte teor:
§7º Para efeito do disposto no inciso II do § 2º, serão desconsideradas as mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto no § 6º do art. 29 da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995.
Trata-se, portanto, de uma disposição interpretativa, isto é, uma norma que fixa interpretação para outra norma, no caso, o inciso II do §2º do art. 47 da Lei 9.504. Coincidentemente ou não, o entendimento que o PL pretende fixar é diametralmente oposto àquele que o Supremo Tribunal Federal entendeu ser conforme à Constituição.
Ora, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, na ADI 2.797, relator Ministro Sepúlveda Pertence, que norma cujo objetivo imediato seja superar prévia interpretação do STF é inconstitucional . Esse precedente foi mencionado pela decisão que concedeu a liminar no MS 32.033. O Supremo Tribunal Federal, em 29 de junho de 2012, ao fixar interpretação para o art. 47, §2º, II da Lei 9.504, o fez com base em dois valores protegidos pela Constituição Federal: o pluripartidarismo, de que a livre criação de partidos é uma consequência natural (art. 1º, V, e art. 17, caput e §3º, da CF); e a representatividade dos partidos políticos no sistema dos direitos políticos e de cidadania instituído pela Constituição Federal, no qual a filiação partidária é condição de elegibilidade (art. 14, caput, e §3º, V e art. 17, caput, da Constituição Federal). Esses valores estão inseridos em dois princípios fundamentais da Constituição Federal. O primeiro, no pluralismo político. O segundo, na soberania popular. Ambos são fundamentos da República Federativa do Brasil, previstos no art. 1º, V, e parágrafo único.
O STF já declarou, portanto, na ADI 4.430 que a mesma interpretação que o PL 4.470 quer dar às Leis 9.096 e 9.504 é inconstitucional e viola dois fundamentos da República. É no mínimo provável, em face do pronunciamento naquela ADI, que a interpretação veiculada no PL 4.470 seja considerada tendente a abolir cláusulas pétreas. Logo, não é meramente o seu conteúdo que é inconstitucional, mas o trâmite do projeto de lei em si. Como, no nosso constitucionalismo o uso do mandado de segurança para suspender trâmites inconstitucionais já é uma tradição que se incorporou às relações entre os poderes, nada mais natural que um parlamentar faça uso dessa garantia, que visa a proteger seu direito líquido e certo de não deliberar sobre proposição tendente a abolir cláusula pétrea.
(…)