Governo defende presença de missionários em áreas de índios isolados
Em resposta a questionamentos do STF, AGU diz que as atividades religiosas promovidas pelos missionários são consideradas essenciais
A permanência de missões religiosas em comunidades indígenas e a defesa do governo para que continuem nessas áreas, mesmo no pior momento da pandemia, provocou indignação em membros da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e indigenistas. Na visão da entidade, nem pesquisadores, muito menos missionários, deveriam estar, nesse momento, em terras indígenas, especialmente aquelas em que há presença de povos indígenas isolados, tendo em vista a vulnerabilidade socioepidemiológica desta população – o que mostra o desconhecimento da gestão Jair Bolsonaro em relação ao básico desta política pública.
Um parecer da Advocacia Geral da União (AGU), respondendo a um questionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.622, de autoria da APIB e do Partido dos Trabalhadores (PT) em dezembro de 2020, é revelador da imperícia.
A ADI alega a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei 14.021 de 2020, que permite a presença de missionários em territórios habitados por povos indígenas isolados durante a pandemia do novo coronavírus.
Em resposta, o governo destaca que “a interação de índios isolados com missionários depende de (i) consulta e autorização da autoridade administrativa da Funai e (ii) avaliação por equipe médica e do aval do médico responsável, exigências que neutralizam os riscos apontados na inicial. As atividades desenvolvidas por missões religiosas consubstanciam exercício do direito fundamental às liberdades de culto e de expressão religiosa (art. 5º, VI, da CF)”, destacou a AGU.
Na avaliação da APIB, ao afirmar que os povos indígenas isolados devem ser consultados para manifestarem se querem ou não ser convertidos pelas missões religiosas, a União sugere que se viole a principal diretriz da política de proteção e localização de povos isolados do país, criada em 1987: a diretriz do não contato. Também mostra que a própria AGU dá o caminho de como aproximar missionários e povos indígenas isolados.
Uma carta de médicos sanitaristas que atuam junto a povos isolados afirma, nos autos, que o aval do médico responsável, como quer a União, não é suficiente para garantir a integridade física de tais populações, visto que não há condições para o acompanhamento da equipe, nem a avaliação política sobre as consequências de um possível contato.
A história recente mostra que muitos evangelizadores não obedecem as regras estabelecidas e entram em territórios indígenas sem a devida autorização da Fundação Nacional do Índio (Funai) ou, sequer, de outros povos indígenas que costumam manter contato mais recorrente com os não indígenas. Há relatos de funcionários da Funai que têm sido pressionados pelo governo a levar evangelizadores até povos isolados, como missionários da Jovens com uma Missão (Jocum), por exemplo.
Outro argumento que causou perplexidade entre os membros da APIB e entre os indigenistas de um modo geral, foi a defesa da AGU para justificar a presença de missionários em territórios de povos isolados afirmando que a religiosidade também é importante para a saúde dos povos indígenas, como se a única religiosidade possível fosse a cristã evangélica. Para a APIB, os indígenas isolados possuem sua própria religiosidade, que lhes permite viver de forma saudável mental e socialmente. A suposição de que os missionários seriam os portadores da única religiosidade para os índios isolados desconsidera as crenças e religiões indígenas, seus usos, costumes e tradições, garantidos no artigo 231 da Constituição Federal.
A APIB não nega a afirmação da OMS trazida aos autos pela AGU de que “… partindo-se de uma abordagem integral e ampliada da saúde humana, que enfatiza seus aspectos subjetivos e psicológicos para além do modelo físico e mecanicista do processo saúde-doença, não são poucos os pesquisadores que apontam a influência positiva da religiosidade no bem-estar dos indivíduos.” A questão para a APIB, porém, é a de que tais populações que vivem em isolamento não necessitam de uma religiosidade cristã vinda de fora de seus costumes para tanto.
Segundo a APIB, o direito à vida, à autodeterminação e à saúde dessas populações está garantido na Constituição de 1988, tanto quanto o direito à liberdade religiosa, a qual pode ser exercida em qualquer local do território nacional sem que se coloque em risco a vida dessas populações. Também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos garante que a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença e a liberdade de professar sua religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
A APIB destaca ainda o trecho da defesa da AGU dizendo que as atividades missionárias são consideradas essenciais durante a pandemia, o que classificou como um absurdo, tendo em vista que neste momento da crise sanitária provocada pelo coronavírus, o distanciamento social se faz ainda mais necessário. Portanto, nada mais prudente do que manter em isolamento os indígenas que já vivem longe do convívio com outros povos como estratégia que, milenarmente, tem se mostrado crucial para a manutenção de suas integridades físicas.
“Cumpre frisar que a permissão prevista no dispositivo questionado está em conformidade com a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas voltadas ao enfrentamento da Covid-19. Esse diploma estabelece, em seu artigo 3º, § 9º, a necessidade de que se resguardem as atividades essenciais. O Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a mencionada lei, considerou como essenciais as atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”.
Chamou a atenção também da APIB as várias confusões feitas pela AGU entre comunidades isoladas e índios isolados, ao longo da defesa, mostrando sua inaptidão sobre as políticas para povos isolados. Os membros da APIB destacaram ainda que em nenhum momento da manifestação da AGU, nos autos, a área técnica da Funai que trabalha em Brasília e na Amazônia com o tema de populações indígenas isoladas ou de recente contato foi consultada.