Terminava a aula na faculdade sobre direito de família quando viu um “zap” da mãe. Telefonou, e ouviu:
— Meu filho, eu recebi uma notícia sobre a reforma do Código Civil…
Não era uma especialista em direito, mas, como toda mãe, conhecia o sentido da palavra “maternidade” muito mais que juízes e professores de direito — caso do filho Pablo Stolze Gagliano, 50 anos, integrante da comissão do Senado responsável pela revisão do Código Civil.
— Sim — ele respondeu, intrigado.
— Aborto, meu filho?
— Minha mãe… — apelou com acento baiano. — Não. Não, não tem aborto, não há nenhum tipo de reconhecimento de aborto.
— Meu filho, casamento poligâmico? Três pessoas vão casar?
— Não, minha mãe, não há nada em relação a isso.
— Mas, Pablo, e essa “família multiespécie”?
Fez um breve silêncio e replicou suave:
— Minha mãe, a senhora sabe o que é “família multiespécie”?
— Não.
Era mais uma vítima das notícias falsas sobre o trabalho da comissão do Senado. Ele explicou: a novidade sociocultural dos laços afetivos de humanos com seus animais requer normas claras no direito de família, e isso é parte da discussão no projeto para os senadores.
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, reuniu 38 juristas para rascunhar uma consolidação de leis, preceitos, normas e regulamentos sobre direitos civis. Depois de 16 190 horas de debates, na contagem da semana passada, chegaram a um consenso sobre o texto básico com meio milhar de artigos. Não foi fácil. A certa altura dos debates, alguém lembrou do sábio aviso do maestro Quincy Jones pendurado na porta do estúdio durante a gravação do hit We Are the World: “Deixe seu ego do lado de fora”. O resultado superou expectativas.
“Senado avança no projeto de novo código de leis para a vida em sociedade”
Prepara-se uma espécie de constituição do direto privado para brasileiros, estrangeiros ou asilados, sintonizada com os tratados internacionais subscritos pelo país. São normas para a sociedade. Abrangem desde os embriões ao nascimento; das famílias (em pluralidade de modelos) ao casamento; das relações de consumo, negócios e patrimônio aos contratos empresariais; dos chamados neurodireitos (privacidade mental e liberdade cognitiva) ao uso e abuso de inteligência artificial. Enfim, regulam diretos e deveres dos indivíduos durante a vida nos mundos real e virtual e, também, depois da morte encefálica, com regras sobre doações de órgãos e herança digital.
A versão atual do Código Civil reflete usos e costumes de um mundo de cinco décadas atrás, quando o regime militar exterminava opositores, roqueiros estreavam no Festival de Woodstock (EUA) e o professor Miguel Reale com seis juristas começavam a trabalhar no projeto. A rádio corredor espalhou a notícia na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Giselda Hironaka tinha 19 anos e ouviu na sala de aula. Especialista em direito sucessório familiar, agora integra a comissão do Senado que revisa o código inspirado por Reale e equipe: “Eram sete e levaram mais ou menos cinco anos para entregar o anteprojeto. Hoje, somos 38 e vamos entregar a proposta em 180 dias”, lembrou numa das reuniões. A internet mudou tudo. E, pela primeira vez, mulheres têm voz e vez nas normas sobre a vida em sociedade, da gravidez à herança.
Os juristas levam o texto ao presidente do Senado na semana que vem. A partir daí começa o debate legislativo, incerto na duração, no conteúdo e com previsível mobilização da miríade de grupos de interesses nos novos “mandamentos” sociais. Evidentemente, o rascunho do novo código não é perfeito (está acessível na página da comissão do Senado). Mas tem virtudes. Uma delas é a atualização dos limites do Estado e da lei em relação ao indivíduo e seu comportamento. Num mundo onde é impossível conhecer todas as regras de direito, propõe a regulação social essencialmente a partir de princípios e valores. Por exemplo, na redefinição do que é família na legislação — do casal aos núcleos de pais e mães “solo” ou de parentes, com base no afeto e sem vínculos sanguíneos.
O grande desafio é a arquitetura de um código para a vida de fácil compreensão coletiva. Alemanha, França e Argentina já fizeram. Agora a vez é do Brasil. Em todos os lugares a ambição é sempre a mesma, o impossível: chegar perto do modelo de linguagem simples e acessível dos Dez Mandamentos.
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Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887