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Dias Lopes

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Picadinho meia-noite

Prato nacional depois de ser incorporado ao cardápio da boate do Copacabana Palace para recuperar os boêmios dos excessos alcoólicos

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 27 Maio 2019, 11h39 - Publicado em 27 Maio 2019, 11h36
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  • Há sete décadas o francês Paul Ruffin, chef-executivo do Copacabana Palace, do Rio de Janeiro, reinterpretou na cozinha do hotel mais glamoroso do Brasil o prato que se tornaria porta-bandeira da culinária nacional: o picadinho meia-noite. Sua receita ainda não incluía todos os acompanhamentos da atualidade, mas já dava água na boca dos frequentadores da boate Meia-Noite, para os quais se destinava. Hoje, transformada e enriquecida, restaurantes do Brasil inteiro a reproduzem.

    A concorridíssima boate Meia-Noite foi aberta em 1943, dentro do imponente prédio mediterrâneo da Avenida Atlântica, 1702, de estilo inspirado nos hotéis franceses Negresco, de Nice, e Carlton, de Cannes. A finalidade do prato era obviamente dar prazer à mesa, mas sobretudo restaurar as energias exauridas pelos boêmios nos excessos etílicos. A boate só abria à meia-noite, com música romântica variada, incluindo boleros e samba-canção, fechando ao raiar do dia – daí o nome. Recebia a clientela para esticadas depois dos shows nos cassinos, filmes nos cinemas ou espetáculos no teatro Municipal do Rio de Janeiro. As reservas se esgotavam diariamente.

    No livro Memórias de um Maître Hotel (Edição Particular, Rio de Janeiro, 1983), o tchecoslovaco Fery Wünsch, que veio para o Brasil em 1930 e virou diretor dos restaurantes do Copacabana Palace, onde permaneceu por quarenta anos, ensina a receita original do picadinho. Levava pontas de filé mignon refogadas na manteiga e temperadas com sálvia, manjericão, segurelha, alecrim, sal e pimenta, além de tomate e um pouco de farinha de trigo para ligar a carne, que cozinhava por dez a vinte minutos.

    Era servido úmido em uma panelinha ou travessa de barro, com arroz, agrião picado, pimenta-malagueta, farinha de mesa e ovo poché por cima. Nada das batatinhas noisettes (redondinhas e douradas na manteiga), das ervilhas, da banana frita ou à milanesa, do caldinho de feijão, da farofa simples e demais adereços complementares da atualidade.

    Conforme o jornalista e escritor Ruy Castro, no delicioso livro A Noite do Meu Bem (Companhia das Letras, São Paulo, 2015), o picadinho começou a ser oferecido na boate por iniciativa de um personagem histórico do Copacabana Palace: o barão austríaco Maximilian Von Stuckart, conhecido por Max. Ele fora contratado em 1940 por Octávio Guinle, dono do hotel, como diretor artístico do Golden Room, o majestoso salão de espetáculos onde se apresentariam anos a fio nomes cintilantes do show business internacional, e acabou ampliando sua jurisdição para o comando das atrações em geral.

    Cozinhar a carne em pequenos cubos é uma intuição universal. Na Idade Média, os senhores se regozijavam com bois assados inteiros ou quase, e outros animais de criação e de caça. Os servos, por não terem acesso a uma comida generosa, ficavam com as sobras rejeitadas ou partes cruas mais duras que geralmente amaciavam em ensopados. Desse modo, aproveitavam-nas ao máximo, picando-as e fazendo render para o maior número de pessoas. Senhores e servos pegavam a comida com a mão.

    A descoberta do garfo, ocorrida mais tarde – o último dos talheres inventados chegou à corte francesa no século XVI – alterou o modo de comer. “Foi nesse momento que surgiu uma nova gastronomia, mais sofisticada, e os pratos picados viram sinônimo de requinte”, lembrava Ricardo Maranhão, eminente professor paulista e historiador da gastronomia. Mas o picadinho, do jeito que elaboramos hoje no Brasil, seguramente fez escala enriquecedora na cozinha do Copacabana Palace.

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    Max Von Stuckart conhecera o prato na Lapa, berço da boêmia carioca e também famoso pela arquitetura, sobretudo dos Arcos da Lapa, construídos no Rio Antigo para funcionar como aqueduto. O prato se popularizara na primeira metade do século XX nos botequins e restaurantes populares daquele bairro notívago da Zona Central carioca. Conquistou reputação como alimento reconfortante e antídoto para quem avançava o sinal no copo.

    Pode ter sido introduzido na Lapa por algum português do Arquipélago da Madeira, onde constitui prato tradicional, compartilhado por várias pessoas. Elas “picam”, ou seja, cravam com um palito ou garfo os pequenos cubos de carne e levam à boca. Preparam-nos com um corte bovino, porco ou frango. Fritam-nos temperados com alho e pimenta, podendo acompanhar milho frito (papas de milho cortadas frias, em quadradinhos, e fritas em óleo).

    Na Zona Central carioca se concentrava uma numerosa colônia de portugueses, suas atividades comerciais e mais importantes associações. Obviamente, o prato foi adotado pela boate Meia-Noite com a mesma finalidade revigorante da Lapa – e ascendeu socialmente. No dizer de Ruy Castro, passou a “salvar vidas em horas mortas e recuperar disposições abaladas por whiskies além da conta”. Cumpriu o seu papel.

    O pai da ideia de incorporá-lo, apetitosamente reestruturado pelo chef executivo Paul Ruffin, era uma pessoa diferenciada. Sob sua batuta, o Copacabana Palace reinou absoluto nos anos dourados de 1940 até meados da década de 1970, que transformaram o Rio de Janeiro em eldorado da arte de viver. O empresário e hoteleiro Octávio Guinle respeitava tanto o barão que o convidava para sentar na sua mesa, algo inédito nas relações entre patrão e empregado no Brasil de então.

    Extremamente refinado e discreto, Max von Stuckart evitava comentar a idade e a sua vida privada, sobretudo a homossexualidade, porém contava que o pai fora comandante da Guarda Imperial ou conselheiro de Francisco José I, Imperador da Áustria e Rei da Hungria, Croácia e Boêmia; que virou nobre em consequência desses serviços qualificadíssimos e ganhou o direito de usar “van” como parte do sobrenome, preposição germânica sinalizadora de origem fidalga. Portanto, o filho recebeu direito de exibir o título de barão.

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    Max von Stuckart assegurava ter servido como tenente da aviação austríaca na Primeira Guerra Mundial. Após o Fokker vermelho que pilotava ser abatido em combate, do qual se salvou por milagre, mudou para o ramo da restauração e da hotelaria. Assim se tornara maître, chef de cozinha, gerente de restaurantes ou hotéis e casas noturnas da Europa. Falava com absoluta segurança das cozinhas, salões e palcos de cidades tipo Paris, Berlim e Budapeste. Sofisticação era com ele. Vestia-se com bom gosto, usava ternos ingleses, gravata borboleta e óculos tartaruga, era ligeiramente calvo, media em torno de 1,70 m e pesava cerca de 80 kg.

    Ao deixar o Copacabana Palace, o barão se transferiu para elegante boate Vogue, no Rio de Janeiro, reduto mágico da finesse, música e society cariocas, na qual investiu tudo o que amealhara. A casa noturna funcionava na Avenida Princesa Isabel, em Copacabana. Tinha excelente comida e entre os pratos do cardápio se encontrava evidentemente o picadinho, do qual ele virou fã. O jornalista Henrique Veltman, ex-chefe de redação dos diários cariocas “Última Hora” e “O Globo”, lembrou que o Max von Stuckart oferecia o prato de graça aos repórteres encarregados de cobrir a efervescência do seu estabelecimento.

    No entanto, o picadinho jamais variava. Cansado do cardápio monótono, o jornalista Ibrahim Sued, porta-voz dos colegas, queixou-se da comida. O dono da Vogue acolheu a reclamação e mandou colocar no picadinho creme de leite azedo e champignons de Paris. Operava uma metamorfose culinária. Lançava naquele momento uma receita que igualmente faria sucesso no Brasil: o estrogonofe. “Colunas e reportagens, a partir dali, cantaram as virtudes e a nobreza do novo prato, que invadiu a cozinha dos emergentes cariocas”, recordou Veltman.

    Quando a Vogue pegou fogo, em 1955, Max von Stuckart ficou abalado financeira e economicamente. Mas as dificuldades duraram pouco. Logo foi contratado por Ruben Berta, presidente da VARIG, que o conhecera no Copacabana Palace e ficara impressionado com ele. Foi cuidar do cardápio de bordo do luxuoso Super G Constellation, um avião de motor a pistão que alcançava até 480 quilômetros por hora e fazia a rota Porto Alegre-Nova York com escalas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belém e Ciudad Trujillo, atual Santo Domingo, na República Dominicana.

    Decolava da capital gaúcha às 11 horas e 30 minutos e chegava no destino às 4 da tarde do dia seguinte. Max von Stuckart transformou o cardápio de bordo do Super G Constellation em elenco de banquete entre as nuvens. Os passageiros da primeira classe saboreavam à vontade caviar malossol com blinis, bortschok, foie gras en brioche, crème de violaille à la reine Margot, côte de veau com legumes e outras iguarias da cozinha francesa e internacional.

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    Os whiskies eram escoceses, os champagnes Dom Pérignon e Bollinger, os vinhos brancos e tintos procediam de Bordeaux: Château Haut-Brion, Château Lafite Rothschild, Château d’Yquen e daí por diante. Mesmo os que viajavam na classe econômica, que pelo conforto e espaço entre as poltronas poderia ser considerada executiva, regalavam-se com canapés de caviar, foie gras en gelée, bitock de volaille etc. Voar pela VARIG se converteu em festa. Só não havia picadinho. Afinal, os boêmios a bordo deviam estar em recesso…

    Na época da boate Meia-Noite, a comida francesa predominava nos menus do Copacabana Palace e dos bons restaurantes do Rio de Janeiro, corretamente preparada e grafada na língua-mãe de Marcel Proust. “Foi o primeiro prato assumidamente brasileiro a dividir os pernósticos cardápios finos cariocas – que então brilhavam nas mesas como jambon d’York braisés au Madère e délices de robalo à la bonne femme”, postou no seu blog “Sem Frescura” a jornalista Claudia Matarazzo, especializada em etiqueta e comportamento.

    Em “Memórias de um Maître Hotel”, Fery Wünsch contou que ficou chique saborear o picadinho. Inúmeros clientes o solicitavam. Eram milionários e personalidades cariocas, políticos, diplomatas, artistas e intelectuais nacionais e do mundo; ou estrelas e astros de Hollywood em visita à cidade. Apreciaram o picadinho, entre outros, a princesa italiana Ira de Furstenberg, que causou alvoroço ao trocar o marido europeu pelo industrial brasileiro Baby Pignatari; a atriz e modelo Ilka Soares; o embaixador Hugo Gouthier (com pedacinhos de azeitona), o senador Lourival Fontes, o poeta Augusto Frederico Schmidt; o cronista Rubem Braga; o poeta e compositor Vinícius de Moraes (com farofa de banana), o empresário João Havelange, então futuro presidente da Fifa; o cantor Mário Reis o filólogo e dicionarista Antônio Houaiss. Outro grande admirador, em visita ao Brasil, foi Nelson Rockfeller, governador de Nova York, milionário, filantropo e empresário norte-americano.

    Fery Wünsch contou que o picadinho era também o prato favorito do gaúcho João Neves da Fontoura, advogado, político e diplomata, duas vezes ministro das Relações Exteriores do Brasil. Saboreavam-no igualmente com prazer dois conterrâneos seus transferidos para o Rio de Janeiro pela Revolução de 1930: Oswaldo Aranha, ministro da Justiça, da Fazenda, das Relações Exteriores e presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas; e o presidente Getúlio Vargas, em escapadas do Palácio do Catete, até o seu suicídio em 1954.

    Mas os adeptos realmente fiéis do prato sempre foram os notívagos e playboys, começando por Jorginho Guinle, sobrinho do hoteleiro Octávio Guinle, e seus amigos inseparáveis: Baby Pignatari, Carlos Niemeyer, Ibrahim Sued, Mariozinho de Oliveira e Sérgio Peterzone. Curiosamente, ao morrer em 2004, o último desejo de Jorginho Guinle não foi comer picadinho. Acometido de um aneurisma na aorta abdominal, ele quis sair do hospital e o abandonou após assinar um termo de responsabilidade.

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    Já dentro da ambulância, disse à Claudia Fialho, inigualável diretora de relações públicas do Copacabana Palace, que ia para o céu. A amiga ficou espantada, pois sabia do seu pertinaz ateísmo. Mas o doente explicou: “Vou para o Copacabana Palace”. Hospedado no quarto 152 do hotel, pediu um estrogonofe de frango, um milk-shake, o aromatizado chá Earl Grey e morreu dormindo. Entende-se as escolhas derradeiras de Jorginho Guinle. Talvez por não chegar da boêmia, ele dispensou o picadinho.

    PICADINHO MEIA-NOITE

    RENDE 10 PORÇÕES

    INGREDIENTES

    PICADINHO

    .2½ Kg de filé mignon

    .20g de alho picado

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    .30g de cebola picada

    .15g de louro

    .30g de alecrim picado

    .30g de segurelha picada

    .30g de salsinha picada

    .30g de farinha de trigo

    .300ml de caldo de carne

    .300g de cubinhos de tomate, sem casca

    .Azeite de oliva o quanto baste

    .Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

    BATATA NOISETTE

    .600g de batatas

    .Manteiga o quanto baste

    .Alecrim a gosto

    .Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

    OVO POCHÉ

    .10 ovos

    .2 litros de água

    .150ml de vinagre

    .Sal a gosto

    ERVILHAS

    .300g de ervilhas frescas

    .Manteiga o quanto baste

    .Sal a gosto

    FAROFA

    .300g de farinha de mandioca torrada

    .Manteiga o quanto baste

    .1 pitada de sal

    ARROZ

    .400g de arroz previamente cozido (use caldo de carne para o cozimento )

    .Manteiga o quanto baste

    PREPARO

    PICADINHO

    1.Limpe e corte a carne em cubinhos.

    2.Em um panela, doure no azeite o alho e a cebola. Misture a carne e os demais temperos (menos os tomates).

    3.Quando a carne estiver quase cozida, junte a farinha e mexa bem. Acrescente o caldo de carne, os cubos de tomate e ajuste o sal.

    4.Deve ficar úmido.

    BATATA NOISETTE

    5.Descasque as batatas, lave-as e enxugue-as. Enfie bem fundo na polpa uma colher redonda, própria para isso (boleador) e, com um movimento circular, retire uma bolinha. Coloque-a na água e vá repetindo a operação.

    6.Escorra as bolinhas de batata, enxugue-as e doure-as em uma frigideira com manteiga bem quente.

    7.Tempere com sal, pimenta, alecrim e complete rapidamente o cozimento.

    8.Escorra.

    OVO POCHÉ

    9.Em uma panela, ferva a água com o vinagre. Quebre os ovos dentro da água, deixe ferver por quatro minutos e retire-os com uma escumadeira.

    ERVILHAS

    10.Cozinhe as ervilhas em água com sal, escorra-as e puxe-as na manteiga quente.

    FAROFA

    11.Aqueça a manteiga em uma frigideira, junte a farinha e, mexendo com uma colher de pau, deixe tostar. Tempere com sal.

    ARROZ

    12.Quase no momento de servir, puxe o arroz (já pronto) na manteiga quente.

    MONTAGEM

    13.Distribua o picadinho em pratos individuais e disponha os ovos em cima.

    14. Guarneça em volta com as ervilhas, a farofa, o arroz e as batatas.

    15.Sirva em seguida.

    .Receita reinterpretada por Paul Ruffin, ex-chef executivo do Copacabana Palace, como era preparada anos atrás pelo seu sucessor Francesco Carli.

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