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Os cannoli do Juventus

Os docinhos italianos que estão na moda em São Paulo seguem a receita original, mas há quem preserve a adaptação feita pelos imigrantes

Por J.A. Dias Lopes 8 jul 2019, 15h48
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  • Nunca se saboreou em São Paulo tantos cannoli (plural de cannolo), os imperdíveis docinhos italianos em formato de tubinhos, à base de farinha de trigo 00, banha de porco ou strutto, vinho Marsala, açúcar, gemas de ovos e fritos em óleo; no recheio, vão ricotta de ovelha, gotas de chocolate amargo e açúcar de confeiteiro; raspas de laranja cristalizada, avelã ou pistache picado como finalização. Existem variações que usam canela, mas é essa a receita tradicional da Sicília, a região que se notabiliza pelo seu preparo.

    Muitas confeitarias e restaurantes de São Paulo oferecem essa delícia, cuja massa estala no dente ao ser mordida, explodindo na boca o recheio cremoso. Há casas voltadas exclusivamente à elaboração. Organizam-se até festivais dos cannoli, como o que aconteceu no bairro paulistano de Vila Mariana, dia 30 de junho, com criatividade liberada. Os recheios iam do doce habitual ao menos frequente salgado.

    São Paulo e o Brasil conheceram os cannoli com os imigrantes do sul da Itália, notadamente os que vieram da Sicília e desembarcaram na cidade entre os séculos XIX e XX. Mas os docinhos ainda são populares na Calábria, seguindo receita parecida, com baunilha, mais frutas cristalizados e chocolate no recheio; e na Campânia, especialmente na comuna de Castellabate, província de Salerno, onde se faz o cannolo cilentano, recheado de um lado com creme de confeiteiro e tendo do outro creme de chocolate. Entretanto, a moda em São Paulo virou febre recentemente.

    Claro, no início do século passado os cannoli eram elaborados de modo diferente das variantes italianas, como muitas receitas adaptadas pelos imigrantes às condições nacionais, pela dificuldade de encontrar as matérias-primas indicadas, pelo dinheiro apertado etc. Nos Estados Unidos, onde são igualmente apreciadíssimos, foi assim. Os imigrantes italianos de lá precisaram mudar a receita primitiva.

    “Na Sicilia, a massa original dos cannoli é delicada e crocante”, explica o pâtissier Flavio Federico, de São Paulo. “A que os sicilianos e seus descendentes começaram a fazer aqui não é a mesma. Fica mais grossa e dura. Entretanto, a principal diferença está no recheio, que não tem ricotta, sobretudo a de ovelha, como se recomenda na Sicília”. Outra característica dos atuais cannoli ítalo-paulistanos: antigamente, fritavam na banha de porco e não no óleo vegetal, raro na cidade e no país. As Indústrias Matarazzo dominavam o mercado dessa gordura animal.

    O primeiro óleo vegetal a ser produzido no Brasil foi o de algodão, chamava-se Sol Levante e foi lançado em 1904. Era também fabricado pelas Indústrias Matarazzo. Entretanto, deixou de alcançar o sucesso esperado, pois o sabor não encantava e apresentava cheiro desagradável na panela, quando submetido a alta temperatura. O consumidor seguiu preferindo a banha de porco para cozinhar. Só em 1929 apareceu um óleo de algodão com esses inconvenientes minimizados: o Salada, da Sanbra.

    Novos concorrentes debutaram nas décadas de 1930 e 1940. Indústrias do ramo de grãos e cereais, como a Anderson Clayton, a J.B. Duarte, a Minet-Longo, a Mogiana e a Swift, fizeram óleos de algodão, amendoim, linhaça e de soja, sendo que o pioneiro à base desta planta asiática teria sido o Sorol, lançado no início da década de 1950 pela Sociedade Refinadora de Óleos Vegetais.

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    Já existem em São Paulo cannoli fieis ao modelo siciliano e são predominantes. Uma das responsáveis pela sua introdução, na década de 1980, foi a siciliana Helena Zamperetti Morici, dona do Taormina Ristorante Siciliano, na Alameda Itu, no bairro de Cerqueira César. Entretanto, a adaptação realizada pelos ítalo-paulistanos continua a ser seguida por alguns. É continuada, por exemplo, por Seu Antônio, nascido Antônio Pereira Garcia e rebatizado de Antônio Cannoli, por mimetismo profissional…

    ANTONIO CANNOLI – Ivan Pacheco-VEJA
    Antônio Canolli: quando veste em serviço a camiseta do Juventus, ele se confunde com os torcedores do time (Ivan Pacheco/VEJA)

    Ele vende seus docinhos nos jogos de futebol do Clube Atlético Juventus, da Rua Javari, 117, na Mooca, bairro povoado pelos imigrantes italianos; e em outros pontos da zona leste da cidade. Dedica-se aos cannoli, feitos em sua casa, muitas vezes com a ajuda da família, há cinco décadas, tendo uma clientela fiel. “Trabalhar com esse docinho é um dom que Deus me deu”, filosofa.

    Seu Antônio fez ligeiras mudanças na receita ítalo-paulistana. Os cannoli não fritam em banha de porco, mas no óleo vegetal, teoricamente mais saudável. Que os brigadistas da dieta teoricamente correta não nos leiam, mas cozinhar com gordura suína geralmente deixa a comida mais gostosa. Nas mais antigas confeitarias sicilianas ainda se prefere o que os italianos denominam strutto.

    Comparados com os sicilianos, os docinhos do Seu Antônio apresentam diferenças importantes. Em vez de leite, ele usa água tanto na massa como no recheio. Também não incorpora ovos. A ausência da dupla de ingredientes faz com que os cannoli durem mais, aguentem bem fora da geladeira, que aliás não constitui local aconselhável para a conservação, pois compromete a crocância da massa frita.

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    Além disso, nada de colocar no recheio ricotta de ovelha, mesmo hoje escassa em São Paulo. Os docinhos do Seu Antônio levam um creme à base de farinha de trigo, açúcar, essência de baunilha, corante de confeitaria amarelo e água. Ele o divide em duas partes. Uma permanece desse jeito; na outra, acrescenta chocolate em pó. Portanto, faz cannoli com dois recheios: creme e chocolate.

    O jornalista Gerardo Landulfo, que nasceu na Itália e mora no Brasil desde 1960, onde é titular da Delegazione di San Paolo da Accademia Italiana della Cucina e diretor da Polvani Tours no Brasil, operadora de turismo com sede em Gênova, acredita que os cannoli do Seu Antônio tenham ascendência na receita da Campânia e não na da Sicília. “É muito parecida com a de Castellabate”, sustenta.

    Como indicam os sobrenomes do Seu Antônio (Pereira Garcia), ele descende de portugueses e espanhóis, mas foi criado sob influência da cultura ítalo-paulistana. Viveu sempre nos bairros dos imigrantes. Aprendeu a receita dos cannoli ao trabalhar para um casal ítalo-paulistano que morava na Vila Carrão, na zona sudeste da cidade, mas natural da Mooca. “Eu tinha dez anos e fiquei encantado com os docinhos dos dois”. Até então, Seu Antônio se virava na rua, engraxando sapatos e fazendo carretos.

    O casal preparava a receita ítalo-paulistana dos cannoli. “Com o tempo, acrescentei o meu próprio toque”, revela. Já vendeu os docinhos nos campos de futebol de várzea, que existiam na zona leste, e nos estádios do Pacaembu e Morumbi, sempre nos dias de jogos. Atualmente, sua maior clientela se encontra no Juventus, um estádio bonito, porém pequeno, com capacidade para 5 mil torcedores. Dificilmente sobra algum docinho.

    Seu Antônio e o Juventus nasceram um para o outro. Quando vende ali os cannoli, vestindo a camiseta grená do time, ou a branca com listras dessa cor na gola e nas mangas, Seu Antônio se confunde com um juventino, nome dado ao torcedor do time. Fundado em 1924, pela colônia italiana da Mooca, o clube inicialmente foi chamado de Extra São Paulo, depois mudou para Cotonifício Rodolfo Crespi (o industrial que o patrocinou desde a primeira hora) Futebol Clube e finalmente se tornou Juventus.

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    O time disputa atualmente a segunda divisão do Campeonato Paulista e enfrenta um longo período de jejum de títulos. Último troféu importante: o de campeão nacional de 1983, pela Série B, na chamada Taça de Prata. Mas a torcida permanece solidária e comparece barulhenta aos jogos, na esperança de novas conquistas.

    Também a camiseta do Juventus já foi outra. Era preta, branca e vermelha na fundação. Em 1930, o seu então presidente Rodolfo Crespi decidiu mudá-la em homenagem aos dois grandes times de Turim. Além de dar ao clube paulistano o nome de (Juventus), incorporou cor grená do uniforme do outro (Torino). A ideia foi do próprio Rodolfo Crespi, mas há várias versões dessa história. A mais aceitável é que existiam em São Paulo outros times alvinegros.

    Rodolfo Crespi era lombardo, porém virou torcedor do piemontês Juventus quando o viu jogar na Itália. Nos anos 80, trabalhando como correspondente da “Guerin Sportivo”, de Turim, uma revista de conteúdo esportivo, embora dedicada quase totalmente ao futebol, o jornalista Gerardo Landulfo contou na Itália a história do Juventus paulistano. “Dá para imaginar qual foi a reação de juventinos e torineses”, lembra ele. “Foi a mesma de um torcedor ao ver um Palmeiras com camisa preta e branca ou um Corinthians de verde”.

    Jogar contra o time do Seu Antônio, porém, pode ser arriscado. Não por acaso, o Juventus tem o apelido de Moleque Travesso: apesar de pequeno, sempre deu trabalho aos grandes adversários. Entre suas vítimas já figurou o Corinthians, contra o qual o atacante juventino Silva fez de bicicleta, em jogo disputado no Estádio do Pacaembu, na zona cental da cidade, um dos mais lindos gols da história do futebol paulistano, em 1989. O próprio goleiro do Corinthians, Ronaldo, aplaudiu o feito.

    Quanto aos cannoli em geral, é impossível não associar sua difusão internacional a uma cena antológica do primeiro filme da trilogia norte-americana “O Poderoso Chefão”, também conhecido por “O Padrinho” e “The Godfather”, de 1972, dirigido por Francis Ford Coppola. O mafioso Peter Clemenza e o frio pistoleiro Rocco partiram em um automóvel dirigido pelo motorista Paulie, com a missão dissimulada de assassiná-lo por vingança – ele faltara ao serviço no dia do atentado à vida do chefão D. Vito Corleone.

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    Antes de partirem, ouve-se uma voz feminina: “Não esqueça dos cannoli”! É a mulher de Peter Clemenza, reiterando a encomenda que fizera. O motorista Paulie foi executado dentro do automóvel, que ficou abandonado em uma estrada. Peter Clemenza estava fora do veículo, fazendo xixi. A cena termina com o mafioso voltando ao veículo, onde ficara o pacote com os docinhos, comprados pouco antes, e dando uma ordem ao pistoleiro Rocco: “Deixe a arma, pegue os cannoli.”

    Os cannoli são um doce enraizado na história milenar da Sicilia, a maior ilha do Mediterrâneo, localizada perto do “dedo” formado pelo desenho de “bota” do mapa da Itália. Sua localização estratégica a tornou disputada e ocupada no passado por vários povos. A receita dos cannoli teria surgido ali durante a ocupação árabe, entre os séculos IX e XI. Seriam inicialmente docinhos preparados pelas odaliscas, as mulheres dos haréns, para receber o emir (título de nobreza equivalente a príncipe) polígamo. Daí o formato fálico que apresentam.

    Já foram docinhos de Carnaval. Hoje, elaborados nos formatos pequeno, médio e grande, lotam as vitrines das confeitarias e são consumidos no Natal, Réveillon e no ano inteiro. Servem como sobremesa doméstica ou de restaurante, nos batizados, casamentos, festas populares e ruas da Sicília, comercializados por vendedores ambulantes. Como muitas receitas regionais, variam conforme a família e a cidade que os preparam. Essa é, aliás, uma das suas riquezas.

    Não esqueça dos cannoli!

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    Receita – Cannoli do Juventus
    Por Antônio Cannoli, o Seu Antônio

    Rende 40 unidades

    INGREDIENTES

    MASSA

    .1 kg de farinha de trigo de boa qualidade
    .1 colher (chá) de sal
    .300ml de água
    .Abundante óleo para fritar (finalização)
    .Açúcar para polvilhar (finalização)
    .40 tubinhos para fazer os cannoli (adquira em panificadoras ou em boas lojas de produtos para confeitaria)

    RECHEIO
    .1.250 kg de açúcar
    .500 g de farinha de trigo
    .3 litros de água
    .1 colher (café) de corante alimentício amarelo-ouro
    .8 colheres (sopa) de essência de baunilha
    .100 g de chocolate em pó

    PREPARO
    MASSA
    1.Peneire a farinha com o sal e, aos poucos, vá adicionando a água e misturando com as mãos, até obter uma massa homogênea e macia.
    2.Sove a massa, sempre com as mãos, faça uma bola e deixe-a em repouso por 20 minutos.

    RECHEIO
    3.Peneire o açúcar com a farinha de trigo e misture bem, para eliminar grumos. Reserve.
    4.Em uma panela grande, ferva a água e adicione o corante e a essência de baunilha. Acrescente a mistura de farinha e açúcar que estava reservada e comece a mexer sem parar, em fogo baixo, por cerca de 7 minutos, até espessar, virando um creme.
    5.Divida esse creme em duas partes e incorpore o chocolate em pó a uma delas, mexendo bem. Serão dois recheios, um de chocolate e o outro de creme. Antes de usar, deixe esfriar completamente, fora da geladeira.

    FINALIZAÇÃO
    6. Abra a massa com o rolo ou cilindro até atingir 2 mm de espessura. Corte tiras na massa e enrole-as em tubinhos apropriados para fazer cannoli, de maneira a preencherem toda a parte externa dos tubinhos .
    7. Frite os cannoli em óleo quente e abundante, sem retirar os tubinhos, até a massa ficar dourada, depois deixe-os escorrer sobre uma peneira para esfriarem.
    8. Retire fora os tubinhos delicadamente, cuidando para não quebrar a massa e coloque os recheios com a ajuda de uma faca. Polvilhe açúcar e sirva.

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