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História de que ‘o filho é meu, faço o que quiser’ não existe

Os vínculos biológicos não configuram um 'termo de propriedade' sobre a criança. Os pais estão limitados aos ditames legais

Por Simone Moreira de Souza*
Atualizado em 4 out 2019, 19h47 - Publicado em 4 out 2019, 19h41
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  • Dentre todas as polêmicas que permeiam o cotidiano brasileiro, um dos destaques recentes foi um concurso de beleza infantil no Programa Silvio Santos (SBT), no dia 22 de setembro. O caso serviu como combustível para a discussão sobre o fenômeno cultural da supressão de vivências eminentemente infantis, causado principalmente pelo avanço de tecnologias capazes de alçar uma criança ao patamar de “ídolo” e, consequentemente, torná-la popular e socialmente aceita. De fato, meninas e meninos têm sido incentivados a perseguir, cada vez mais cedo, um “ideal” no qual o objetivo é que eles se tornem “pequenos adultos” — desde a vestimenta, maquiagem e acessórios até ao uso da linguagem e gestual não infantis.

    Infelizmente, nos tempos atuais, até a palavra “infantil”, por si só, tornou-se um adjetivo com conotação pejorativa.

    Neste contexto, a maior dificuldade imposta aos pais é justamente identificar o tênue liame que separa o incentivo à autonomia e autoestima da criança ou do adolescente daquele meramente egocêntrico e deletério à integridade física e psíquica dos filhos.

    Tanto o artigo 227 da Constituição Federal quanto os arts. 4º e 5º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) estabelecem que “é dever da família, da sociedade e do poder público” assegurar com absoluta prioridade a efetivação de direitos essenciais de crianças e adolescentes (dentre eles, o direito ao respeito), “colocando-os à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

    Não é por acaso que o legislador estabeleceu esta ordem: família, sociedade e Estado. Quando a família falha (voluntária ou involuntariamente) e a sociedade se omite cabe ao poder público intervir, quer seja através da fixação de diretrizes mínimas que preservem a integridade de crianças e adolescentes ou pela atividade fiscalizatória do cumprimento dos ditames legais.

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    Os vínculos biológicos não configuram um “termo de propriedade” sobre a criança. Os pais estão limitados aos ditames legais. Esta história de que “o filho é meu, faço o que quiser”, não existe. Muitas vezes, diante do fenômeno social que impõe a exposição midiática como sinônimo de sucesso e felicidade, por “amor aos filhos” ou por medo de serem tachados de repressores ou chatos, os pais deixam de exercer o dever de cuidado e, em nome de uma pseudo-liberdade de crianças e adolescentes, acabam por permitir o acesso ou exposição à conteúdo inadequado.

    Infelizmente, nos tempos atuais, até a palavra ‘infantil’, por si só, tornou-se um adjetivo com conotação pejorativa’

    Não são raros os casos de crianças e adolescentes que, iludidos pela possibilidade de fama e aceitação, criam canais de internet, gerando conteúdo e disponibilizando sua imagem (com ou sem acompanhamento dos responsáveis legais) de maneira ilimitada. Em tempos de patologias sociais crônicas, mesmo a exposição aparentemente inofensiva e lúdica pode ser utilizada de maneira criminosa. É comum pais desesperados solicitarem auxílio após propagações indevidas da imagem dos filhos pela internet, em vídeos ou memes que eles próprios disponibilizaram, inocentemente.

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    Em razão de tal vulnerabilidade óbvia dos menores, o Estado tem o dever de intervir na seara privada quando ocorrem violações de direitos de crianças e adolescentes, em âmbito coletivo ou individual, por ação ou omissão da família ou da sociedade. Diversos dispositivos legais brasileiros preveem mecanismos de prevenção e de proteção que, adequadamente aplicados, evitariam que crianças e adolescentes fossem expostos à situações vexatórias e constrangedoras. Um deles é o Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecido como uma das mais completas legislações especializadas.

    O neologismo “adultização” tem sido utilizado para a supressão da infância e, quase sempre, está associado à erotização da imagem de crianças e adolescentes. Muitas vezes, há a necessidade da intervenção do Estado (mesmo contra os pais, empresas ou instituições) para lhes preservar a integridade física e psíquica, concretizando o almejado ideal de proteção integral previsto no ECA. Essa é a única forma de provar que, no Brasil, essa “lei pegou”.

    * Simone Moreira de Souza é defensora publica titular da 1ª Vara de Infância, Juventude e Idoso da Capital (Rio de Janeiro)

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