Aos 27 anos em que permaneceu preso por sua luta contra o apartheid, o sul-africano Nelson Mandela (1918-2013) sofreu toda forma de violência moral e psicológica. Tão logo foi detido, em 1962, buscou sua válvula de escape nas correspondências à família, aos companheiros políticos e mesmo às autoridades. Seus escritos, porém, desagradavam ao regime racista. A certa altura, Mandela afirmou que sucessivas barreiras tinham “uma intenção e uma diretriz deliberadas para me apartar e isolar de todo contato exterior, para me frustrar e abater, para me fazer cair no desespero e perder toda a esperança e por fim me vergar”.
Ele não se vergou. Mandela saiu da cadeia em 1990 para varrer o apartheid do mapa e tornar-se o primeiro presidente negro da África do Sul. O imenso volume de correspondências que deixou é um guia estupendo das estratégias de um homem para se manter de cabeça erguida e firme em seus propósitos apesar da opressão e do isolamento. Com chegada às livrarias do Brasil e do mundo nesta terça-feira 10, no momento em que se comemora o centenário de seu nascimento, o livro Cartas da Prisão de Nelson Mandela transmite de forma direta as emoções, os desejos de paz e igualdade racial, além da vivacidade do estadista.
Gostaria de reiterar a declaração que prestei em correspondência anterior de que nunca fui funcionário, dirigente, membro ou apoiador ativo do Partido Comunista da África do Sul. Além disso, nego que minha condenação no caso citado o autorize a incluir meu nome na lista de pessoas que eram membros ou apoiadores ativos do Partido Comunista, e contestarei vigorosamente qualquer esforço de sua parte em fazer isso. Tenho a firme convicção de que a alegação de que eu era membro ou apoiador ativo do Partido Comunista é um ato de perseguição e uma manobra de propaganda concebida para distorcer minhas crenças políticas e para justificar a remoção do meu nome do registro de advogados. Não é de modo algum inspirada por uma convicção honesta de que eu seja um comunista. (…)
No que se refere à questão das minhas convicções políticas, sempre me vi, antes e acima de tudo, como um nacionalista, e ao longo de toda a minha carreira política fui influenciado pela ideologia do nacionalismo africano. Minha única ambição na vida é, e sempre foi, desempenhar meu papel na luta do meu povo contra a opressão e a exploração pelos brancos. Eu luto pelo direito das pessoas africanas de governarem a si mesmas em seu próprio país.
Embora eu seja um nacionalista, não sou de modo algum racista. Aceito plenamente o princípio estabelecido no relatório do Conselho Conjunto de Planejamento do Congresso Nacional Africano e do Congresso Indiano Sul-Africano (…) que diz que todas as pessoas, independentemente do grupo nacional a que pertençam, têm o direito de viver uma vida plena e livre baseada na mais completa igualdade.”
Carta para o representante do Departamento de Justiça da África do Sul, em 23 de outubro de 1967
Fruto de longo esforço de pesquisa e leitura, a coletânea de mais de 200 cartas inéditas talvez suplante, pela vastidão e pela riqueza memorialística, todos os livros biográficos e autobiográficos publicados sobre o líder até hoje. Reúne parte importante do acervo escrito em quatro penitenciárias, entre novembro de 1962 e fevereiro de 1990, e espalhado atualmente por vários arquivos. Suas correspondências são apresentadas de forma sequencial, respeitando a ordem cronológica. Apesar de vasto, o volume contém apenas uma pequena parcela das cartas que Mandela escreveu nos anos de prisão — muitas das quais se perderam ou nunca chegaram aos destinatários.
Mandela nunca deixou de escrever, ainda que vez ou outra se queixasse a seus familiares da falta de resposta às cartas que enviava a amigos e companheiros do Congresso Nacional Africano. A reunião das correspondências revela outra história por trás das grades das celas em que foi confinado por quase três décadas, por combater o sistema segregacionista que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994 e que promovia a separação social, política e religiosa entre brancos e negros. Da cadeia, Mandela manteve sua militância pela igualdade e equidade dentro e fora de seu país (confira trechos de três cartas ao longo da reportagem).
Mais uma vez nossa amada mamãe foi presa e agora ela e o papai estão na cadeia. Meu coração sangra quando penso nela em alguma cela policial longe de casa, talvez sozinha e sem ninguém com quem conversar, e sem nada para ler. Vinte e quatro horas por dia sentindo falta de suas pequenas. Pode ser que se passem meses e até anos antes que vocês a vejam de novo. Por muito tempo talvez vocês vivam como órfãs, sem seu lar e seus pais, sem o amor natural, o afeto e a proteção que a mamãe costumava lhes dar. Agora vocês não vão ter festas de aniversário nem de Natal, nem presentes, nem vestidos novos, nem sapatos, nem brinquedos. Ficaram no passado os dias em que, depois de tomar um banho quentinho ao anoitecer, vocês se sentavam à mesa com a mamãe e saboreavam sua comida simples e gostosa. Não mais as camas confortáveis, com os cobertores quentinhos e os lençóis bem limpos que ela costumava providenciar. Ela não estará aí para fazer com que amigos levem vocês a concertos e peças, ou para lhes contar histórias bonitas, ajudá-las a ler livros difíceis e responder às muitas perguntas que vocês gostariam de fazer. Não terá condições de lhes dar a ajuda e a orientação de que precisam à medida que vão crescendo e novos problemas vão surgindo. Talvez nunca mais a mamãe e o papai voltem a se juntar a vocês na casa nº 8115 da Orlando West, o lugar do mundo todo que nos é mais querido.
Não é a primeira vez que a mamãe vai para a cadeia. Em outubro de 1958, apenas quatro meses antes do nosso casamento, ela foi presa com 2 000 outras mulheres quando protestavam em Johanesburgo contra os passes de locomoção e ficou duas semanas na prisão. No ano passado ela cumpriu quatro dias, mas agora ela voltou para a cadeia e não sei dizer quanto tempo ficará detida desta vez. Tudo o que desejo que vocês sempre tenham em mente é que temos uma mamãe valente e determinada que ama sua gente com todo o seu coração. Ela abriu mão de prazeres e confortos por uma vida cheia de sacrifício e penúria por causa do profundo amor que ela tem por seu povo e seu país. Quando vocês forem adultas e pensarem detidamente nas experiências desagradáveis que a mamãe atravessou e na obstinação com que ela se aferrou a suas convicções, vocês começarão a compreender a importância da contribuição dela à batalha pela verdade e pela justiça e quanto ela sacrificou de seus interesses pessoais e de sua felicidade. (…)
Quando a mamãe foi presa em 1958, eu ia visitá-la todos os dias, levando comida e frutas. Eu me sentia orgulhoso dela, especialmente porque a decisão de se unir às outras mulheres para protestar contra os passes de locomoção foi tomada livremente por ela, sem nenhuma sugestão minha. Mas a atitude dela diante da minha própria detenção me fez conhecer a mamãe melhor e de modo mais completo.”
Carta para Zenani e Zindzi Mandela, sua filha do meio e a caçula, em 23 de junho de 1969
Para além do valor como testemunho de seu ativismo inquebrantável contra o sistema de opressão racial, as cartas trazem à luz o homem Mandela. Zamaswazi Dlamini-Mandela, neta do líder africano, enfatiza na abertura do volume que elas expõem “o Nelson Mandela advogado, pai, marido, tio e amigo, e ilustram como seu longo encarceramento, ao afastá-lo da vida cotidiana, era um obstáculo ao cumprimento desses papéis”. Mesmo censurado pelas autoridades carcerárias, Mandela tornou-se um correspondente prolífico, que não temia expressar seus ideais e posicionamentos políticos. Em carta de 23 de outubro de 1967 endereçada ao Departamento de Justiça, ele se defende da acusação de ser supostamente ligado ao Partido Comunista da África do Sul. Após polidas saudações, o missivista declara que nunca foi “funcionário, dirigente, membro ou apoiador ativo do Partido Comunista da África do Sul”. Com veemência, contesta sua condenação e a inclusão de seu nome como membro e apoiador ativo do partido. Embora não negue ser simpático às leituras marxistas, sustenta que sua ligação é com o Congresso Nacional Africano, vertente política e ideológica que reivindicava o fim da dominação colonial europeia e a independência dos países africanos com base no princípio da não violência, tal como pregavam Mahatma Gandhi e Pandit Nehru na Índia. E esclarece qual foi, sempre, sua única ambição: “Eu luto pelo direito das pessoas africanas de governarem a si mesmas em seu próprio país”.
As cartas também revelam um homem, marido e pai preocupado com a segurança e o bem-estar de sua família, principalmente após a prisão de sua esposa, Winnie Mandela. Em carta escrita em 23 de junho de 1969 para as filhas Zenani e Zindzi, Mandela deixa transparecer sua apreensão com a detenção da esposa e, ao mesmo tempo, procura exibir-se forte para não desencorajar as filhas. “Mais uma vez, nossa amada mamãe foi presa e agora ela e o papai estão na cadeia. Meu coração sangra quando penso nela em alguma cela policial longe de casa, talvez sozinha e sem ninguém com quem conversar, e sem nada para ler”, emociona-se.
Quando penso nos desastres que se abateram sobre nós ao longo dos últimos 21 meses, eu me pergunto com frequência o que é que nos dá a força & a coragem para seguir em frente. Se as calamidades tivessem o peso de objetos físicos, nós teríamos sido esmagados há muito tempo, ou então estaríamos agora corcundas, vacilando sobre as pernas, & com o rosto cheio de desolação & completo desespero. No entanto, todo o meu corpo pulsa de vida & está cheio de esperança. Cada dia traz um novo sortimento de experiências & novos sonhos. Ainda sou capaz de andar perfeitamente ereto & com firmeza. O que é ainda mais importante para mim é saber que nada poderá jamais prostrar você & que seu andar continua ágil & gracioso como sempre foi — uma garota capaz de rir animadamente & contagiar os outros com seu entusiasmo. Tenha sempre em mente que é assim que eu penso em você. (…)
Nestes tempos febris, em que o adversário está tramando ardilosamente & espalhando armadilhas por todo lado, somos chamados a ser extremamente cautelosos & vigilantes; & não há nada errado em chamar atenção para os perigos que nos aguardam, ainda que esses perigos estejam claramente à nossa vista. Lutamos contra um dos últimos bastiões de reação no continente africano. Em casos desse tipo, nossa missão é simples — no momento apropriado declarar de modo claro, firme & preciso as aspirações que acalentamos & a África do Sul maior pela qual lutamos. Nossa causa é justa. É uma luta por dignidade humana & por uma vida decente. Nada deve ser feito ou dito que possa ser interpretado direta ou indiretamente como uma negociação de princípios, nem mesmo sob a ameaça de uma acusação mais grave & de uma pena mais severa. Ao lidar com pessoas, sejam elas amigas ou inimigas, você é sempre educada & amável. Isso é igualmente importante em debates públicos. Podemos ser francos e autênticos sem ser afoitos ou ofensivos, podemos ser educados sem ser subservientes, podemos atacar o racismo & seus males sem nutrir em nós mesmos sentimentos de hostilidade entre diferentes grupos raciais.”
Carta para a esposa, Winnie Mandela, em 1º de julho de 1970
A mesma carta lembra que não era a primeira vez que Mandela sofria com as prisões de Winnie. Ele recorda que, em outubro de 1958, a esposa fora presa com 2 000 outras mulheres quando elas protestavam em Johanesburgo contra a regra draconiana que obrigava as mulheres negras a portar uma carta de locomoção para poderem transitar pelas ruas das cidades sul-africanas. Mandela termina a carta ressaltando a força de sua companheira: “Ela abriu mão de prazeres e confortos por uma vida cheia de sacrifício e penúria por causa do profundo amor que tem por seu povo e seu país”. Pediu, por fim, que as filhas guardassem na mente a imagem de “uma mamãe valente e determinada que ama sua gente com todo o seu coração”.
Mandela nunca omitiu em suas cartas as contínuas perseguições que ele e a esposa sofriam. Fica claro que Winnie foi seu alicerce durante os longos anos distante do convívio social. Em uma das cartas escritas para ela, em 1º de julho de 1970, ele fala da dor e angústia que ainda se captavam em seus olhos pela perda do filho mais velho, Thembi. E é por meio de frases dirigidas à companheira que Mandela dá algumas de suas mais tocantes lições de resiliência: “São homens & mulheres como nós, Mhlope (nome pelo qual chamava Winnie), que estão enriquecendo a história do nosso país & criando um legado do qual gerações futuras sentirão verdadeiro orgulho”. As Cartas da Prisão de Nelson Mandela são gritos de liberdade de uma África negra que clama todos os dias por igualdade, equidade e paz. Mas essas memórias do cárcere são também documentos sobre um bem maior a ser preservado por toda a humanidade: a liberdade.
* Mariana Gino é doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em história da África
Publicado em VEJA de 11 de julho de 2018, edição nº 2590