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Escravo das denúncias

Para sobreviver a nova acusação, Temer agrada aos ruralistas mudando a definição de “trabalho análogo à escravidão”. Os protestos já começaram

Por Giuliano Guandalini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Robson Bonin Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 out 2017, 06h00 - Publicado em 20 out 2017, 06h00
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  • Havia algum tempo estava em discussão nos gabinetes de Brasília a necessidade de estabelecer parâmetros mais claros para as autuações de combate ao trabalho escravo. A queixa comum entre produtores rurais, empresários e advogados era que reina uma grande dose de subjetividade na ação dos fiscais. Situações que não passariam de infrações trabalhistas acabavam enquadradas como trabalho escravo. Pelo artigo 149 do Código Penal, alterado por lei de 2003, é crime “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

    Os problemas começam na hora de saber exatamente o que é “jornada exaustiva” ou “condições degradantes”. A pena pode chegar a oito anos de cadeia e os acusados são incluídos na “lista suja do trabalho escravo”, o cadastro de empregadores flagrados mantendo funcionários em condições tidas como análogas à escravidão. Quem tem o nome sujo fica impedido de obter crédito na praça.

    Na segunda 16, sem aviso prévio, o Ministério do Trabalho publicou uma portaria que altera diversas regras do combate ao trabalho escravo. Em um dos pontos, o texto faz a distinção entre trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante e condição análoga à escravidão. Parte dos juristas aplaudiu a decisão. Eles argumentam que haverá mais clareza na interpretação da lei. “A portaria reduz a insegurança jurídica e amplia a possibilidade de defesa”, afirma o professor de direito do trabalho Antonio Galvão Peres, do Robortella Advogados. Outros acreditam que a portaria é inconstitucional por se sobrepor ao artigo 149 do Código Penal. Pelo artigo, qualquer uma daquelas quatro condições configura o emprego análogo à escravidão.

    Pelo novo texto, o trabalho escravo estará caracterizado apenas quando houver cerceamento de liberdade. O Ministério Público considerou a portaria um retrocesso e encaminhou um ofício ao ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira (PTB), recomendando a revogação. Argumenta que os fiscais perderão autonomia. Outro ponto controverso: a lista suja, antes elaborada e divulgada por técnicos do ministério, será agora publicada “por determinação expressa do ministro do Trabalho”.  Segundo a advogada Gisela Freire, do escritório Souza Cescon, uma “decisão técnica passará a ser política”. Ainda assim, ela vê como positivo o fato de o empregador, a partir de agora, ser retirado da lista tão logo corrija as falhas apontadas pelos fiscais. Hoje, o acusado fica até dois anos com o nome sujo.

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    Ministro Ronaldo Nogueira durante cerimônia do anúncio de distribuição de resultados do FGTS, no Palácio do Planalto, em Brasília, DF, 10-08-2017 Foto: Edu Andrade - ASCOM/Ministério do Trabalho
    Revisão – Ronaldo Nogueira, ministro do Trabalho: a favor do “setor produtivo” (Edu Andrade/ASCOM/Ministério do Trabalho/)

    Não são novidade os exageros por parte de alguns fiscais e o açodamento de certos promotores. Mas a decisão de publicar a portaria na mesma semana em que a Câmara analisava a segunda denúncia contra Michel Temer só pode ser vista como um aceno do presidente aos aliados na sua batalha para se preservar no cargo. O articulador da portaria foi o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), que assumiu em fevereiro a presidência da Frente Parlamentar da Agropecuária, vulgo bancada ruralista, prometendo rever as regras do trabalho escravo.

    Leitão comanda um colegiado de 230 deputados. Temer sempre fez questão de bajular os ruralistas. Na posse de Leitão, o presidente anunciou a intenção de “simplificar” e “desburocratizar” a legislação. O tema tornou-­se moeda de troca. Tanto que Leitão intensificou suas visitas ao palácio. Foram pelo menos três reuniões com Temer e técnicos do Planalto para tratar do assunto. Para não ficar a ver navios, como na primeira denúncia, quando Temer prometeu mas não cumpriu, desta vez a bancada cobrou a fatura adiantado. Na semana passada, Leitão pediu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, intercedesse junto a Temer para que a portaria fosse publicada antes da votação da denúncia na Câmara. “O Nilson Leitão colocou essa portaria como prioridade. A intenção foi de regulamentar, porque os fiscais do Trabalho estavam cometendo muitos abusos. Foram dois meses de reuniões com o Planalto para alinhar essa matéria. Como estava demorando, a bancada foi até o Rodrigo para que saísse nesta semana”, disse o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP). Em meio à pressão, o ministro Ronaldo Nogueira admite acolher sugestões, mas pondera que não há nenhuma possibilidade de revogação do texto. “No Congresso, esse é um pleito antigo do setor produtivo para alcançar segurança jurídica”, diz. “Precisamos combater a bandidagem. Mas é necessário ter bom-senso.”

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    A portaria deverá render votos a Temer, mas o presidente criou mais um motivo para ser criticado no Brasil e no exterior. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que deu início à nova política de ação contra o trabalho escravo, afirmou: “Considero um retrocesso inaceitável a portaria que limita a caracterização do trabalho escravo à existência de cárcere privado”. Em paralelo, o Brasil poderá sofrer reprimendas de organismos internacionais. De fato, Temer tem o mérito de enfrentar uma agenda de ajustes espinhosos e essenciais à economia. O combate ao trabalho escravo é um tema passível de ajustes. Mas a edição oportunista de uma portaria não parece ter sido a melhor maneira de encarar a questão.

    Com reportagem de Marcela Mattos

    Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2017, edição nº 2553

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