Com popularidade em alta no fim de seu primeiro governo principalmente por causa do Plano Real, Fernando Henrique Cardoso deu sinal verde para as tratativas da proposta de emenda à Constituição que deu o direito a presidentes, governadores e prefeitos concorrer à reeleição. A PEC foi aprovada no Senado em sessão realizada em 4 de junho de 1997. O caso ficou conhecido também por entrar para a crônica de denúncias de corrupção, embora elas não tenham sido posteriormente investigadas a contento. A votação foi realizada em meio a rumores envolvendo compra de votos de deputados. As suspeitas aumentaram a rejeição à proposta no Senado, mas não o suficiente, e os governistas precisaram de apenas nove minutos para aprovar a matéria com 62 votos a favor e 14 contrários. No final daquela sessão, o então presidente do Congresso, Antonio Carlos Magalhães (1927-2007), disse que o resultado abriria a campanha para a disputa presidencial que ocorreria no ano seguinte e que FHC, “pela liderança que tem, é um forte candidato à reeleição”. Como se sabe, o tucano, de fato, conseguiu a façanha de aprovar a matéria e ser o principal beneficiário dela.
O que parecia uma ideia razoável, visando garantir a continuidade de boas políticas públicas, revelou-se na prática um problema, atirando o país num estado permanente de campanha eleitoral. Grande parte dos vitoriosos já começam o governo pensando em como viabilizar a reeleição. Há inúmeros efeitos perversos desse indisfarçável esforço de permanência no comando, a começar pelo uso da máquina pública para assegurar essa perpetuação. Nada disso é mais maléfico do que a tendência de concentração de poder nas mesmas castas políticas, o que enfraquece a democracia, em última instância.
Paradoxalmente, apesar de a classe política ter formado quase um consenso em torno dos efeitos nefastos da reeleição, os próprios políticos, contaminados por interesses mais rasteiros e imediatistas, não tiveram a coragem de acabar com o sistema. Ao longo das últimas décadas, alguns parlamentares fizeram dezenas de tentativas para terminar com a reeleição — e todas foram infrutíferas. Agora, surgiu no horizonte do Congresso um novo esforço nessa direção. A diferença é que ele já nasceu contando com um apoio político de peso, o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A iniciativa partiu do senador Marcelo Castro (MDB-PI), que elaborou três alternativas para o fim da reeleição para presidente, governadores e prefeitos, com uma contrapartida: a extensão de mandato dos atuais quatro anos para cinco. A distinção entre as propostas fica por conta da modulação de como esse sistema seria implantado (confira o quadro). A ideia é que, se aprovada, a reeleição seja extinta definitivamente só após 2034, para não ferir direitos adquiridos e expectativas de direito.
Otimista, Castro avalia que, ao contrário das tentativas anteriores, o momento é mais propício para o debate e que a aprovação deve ser conquistada nos próximos meses. “Hoje há um consenso maior”, afirma. Algumas vozes já se levantaram a favor da iniciativa dentro do Congresso. Líder da minoria, Ciro Nogueira (PP-PI) disse que a proposta tem reais chances de aprovação. “Há um consenso de que não temos instrumentos na democracia para combater os abusos eleitorais de uma reeleição”, diz. Outra voz relevante foi a do senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado, que disse ser um assunto “para ontem”. Principal padrinho da proposta, Rodrigo Pacheco quer transformar a PEC num marco de sua gestão, antes dos seus próximos passos políticos: eleger seu sucessor no ano que vem e se credenciar para tentar o governo de Minas em 2026. “Convivemos com o instituto da reeleição há quase três décadas. O país observou acertos, mas também equívocos no processo. E há agora no Congresso e na própria sociedade um sentimento de correção de rumos”, afirmou ele a VEJA. “Precisamos deixar de lado esse eterno estado de campanha eleitoral e os interesses individuais para fortalecermos o país.”
Para além do campo do Congresso, a proposta já ganhou o apoio de vários governadores. Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, Romeu Zema (Novo), de Minas, Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul, e Ratinho Jr. (PSD), do Paraná, deram declarações públicas favoráveis à iniciativa. Curiosamente, todos eles se beneficiaram desse mecanismo e foram reconduzidos aos cargos que ocupam, à exceção de Tarcísio. O governador paulista está no primeiro mandato e costuma dizer que sua prioridade política é conquistar mais quatro anos à frente do Palácio dos Bandeirantes, embora seu nome esteja sendo fortemente cogitado para disputar o próximo pleito presidencial como candidato de oposição ao governo do PT.
Apesar dos fortes apoios, o caminho para aprovação da PEC é incerto, ainda mais em ano de campanha política, embora as mudanças não incidam sobre os eleitos em 2024. Os detratores da iniciativa espalham pelos corredores do Congresso que ela não passaria de jogo de cena de Pacheco e Castro para ganhar visibilidade na opinião pública. Na Câmara, o assunto está longe das prioridades da Casa para este ano, mais interessada na regulamentação da reforma tributária e na pauta verde. Há ainda outro obstáculo considerável, o próprio governo. A posição de Jaques Wagner, que ele afirma ser pessoal, por exemplo, foi prontamente rebatida pela presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), que afirmou não espelhar a opinião da legenda. Para ela, acabar com a reeleição é um “retrocesso”. O próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, disse nesta semana, durante um encontro com senadores em que Pacheco e Castro estavam presentes, que é contrário à proposta de fim da reeleição e extensão de mandatos para cinco anos.
Autor da PEC que instituiu a reeleição em 1997, o deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE) ainda defende o projeto, dizendo que o mecanismo é adotado em nações desenvolvidas, como França e os Estados Unidos, sendo que este último caso foi usado como referência para o modelo brasileiro. “Essa proposta de unificação das eleições foi feita para agradar os políticos e ignora a necessidade do eleitor de escolher de forma alternada representantes nacionais e locais”, afirma. É uma opinião respeitável, mas talvez a melhor e mais isenta avaliação do legado da reeleição foi feita pelo primeiro beneficiário dela. Mais de duas décadas depois, o próprio FHC declarou que a mudança foi um erro, pregando a volta do sistema anterior, mas com a adoção de mandatos de cinco anos. Em artigo publicado em 2020, o ex-presidente fez um mea-culpa em relação à situação de desequilíbrio entre quem tenta a reeleição e a concorrência: “Visto de hoje, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade”. Extinguindo-se ou não o mecanismo de reeleição, aumentando-se ou não a duração dos mandatos, o que o Brasil precisa é fortalecer as instituições, de forma a garantir condição de igualdade na disputa eleitoral, e que, uma vez eleitos, os mandatários se dediquem a promover políticas públicas para melhorar a qualidade de vida de quem os colocou no cargo. A verdade é que em nada o advento da reeleição contribuiu para aprimorar o sistema. O país precisa retomar esse debate de forma séria e urgente.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883