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O juiz não é a Justiça

O ensaio de censura do STF amparou-se na noção de que criticar um ministro é atacar a Corte — uma distinção imperial que vai contra a liberdade de expressão

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h31 - Publicado em 19 abr 2019, 07h00
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  • Manifestações pela liberação do consumo de drogas — as chamadas “Marchas da Maconha” — já foram proibidas por decisão judicial em várias cidades do país. Os juízes consideravam que as passeatas, ao reivindicar mudanças no pensamento legal brasileiro, se enquadravam na “apologia do crime” definida no artigo 287 do Código Penal. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal deu fim a essa aplicação censória da lei. Julgou, por unanimidade, que a proibição das marchas violava as liberdades de associação e expressão. Quatro anos depois, também por unanimidade, a Corte maior do país liberou a publicação de biografias sem a necessidade de autorização prévia do biografado ou de seus herdeiros. Até então, uma interpretação equivocada de dois artigos do Código Civil vinha sendo empregada para instaurar, nos tribunais de primeira instância, a censura prévia sobre esse gênero de livro. O STF firmou neste século uma tradição de defesa à liberdade de expressão — princípio basilar de todas as democracias, que no Brasil vai inscrito no artigo 5º da Constituição. A tradição foi quebrada na segunda-­feira 15 pelo ministro Alexandre de Moraes e pelo atual presidente da Casa, Dias Toffoli. Atendendo a um pedido do ministro presidente, que já o incumbira de conduzir um vasto inquérito sobre ataques ao Supremo, Moraes ordenou a retirada do ar de uma reportagem da revista on-line Crusoé, e também colocou sob cabresto O Antagonista, site associado à revista. A decisão monocrática de Moraes traía o papel fundamental do STF de zelar pelos princípios constitucionais. A corte que deveria proteger a liberdade de expressão censurou a imprensa. “A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República”, declarou o decano da Corte, Celso de Mello. Moraes recuou da censura, mas o estrago estava feito.

    A reportagem censurada dizia que Marcelo Odebrecht informara à Lava-Jato a identidade de uma figura chamada, em mensagens de e-mail trocadas em 2007, pelo codinome “o amigo do amigo de meu pai”. Tratava-se de Dias Toffoli, então advogado-geral da União do governo Lula. Nada além disso. Nem havia suspeita de negócios escusos. Caberia ao ministro dar a resposta-­padrão de autoridades quando seus nomes aparecem em situações que alguém pode considerar suspeita: afirmar que sempre conduziu suas funções com lisura, que não atendeu a nenhum pleito ilegal da empreiteira etc. Mas não: Toffoli preferiu convocar Moraes para, no papel de cão de guarda, ladrar contra a imprensa. Seguiram-se alegações e justificativas legalmente duvidosas e moralmente vergonhosas. Moraes afirmou que a reportagem era o que não era: “um típico exemplo de fake news”. Toffoli, em entrevista ao Valor Econômico, sugeriu que a informação sobre um caso de quase doze anos atrás só veio à tona agora em um esforço “orquestrado” para constranger o STF às vésperas do julgamento sobre a prisão de condenados em segunda instância. Se essa hipótese procede, seria o caso de Toffoli reforçar a mensagem de que a Corte suprema e seu presidente não serão jamais constrangidos. Ao mandar ocultar informações da opinião pública, ao contrário, o ministro arriscou passar a impressão de que a reportagem roeu apenas um ossinho modesto dos esqueletos de seu armário. E abriu uma porta sombria para a limitação dos direitos civis. “Esses precedentes são perigosos. No caso das biografias foi assim: depois que o primeiro juiz cassou um livro, vieram várias ações contra outras biografias”, diz a advogada Deborah Sztajnberg, que defendeu Paulo Cesar de Araújo, biógrafo de Roberto Carlos, no processo movido contra ele pelo biografado.

    Maria do Rosário
    A OFENDIDA - A deputada Maria do Rosário: processo criminal por injúria movido por quem conta com foro privilegiado (Evaristo Sá/AFP)

    Na mesma entrevista ao Valor, Toffoli levantou um princípio ainda mais problemático, que, levado às últimas consequências, criaria no país uma casta de autoridades intocáveis. Atacar o presidente do STF, proclama o próprio presidente do STF, é atacar a instituição. O titular de um cargo público não é um rei absolutista cujo corpo se confunde com o corpo do Estado. E a palavra “ataque” é vaga a ponto de se tornar capciosa. Toffoli a emprega com uma pesada carga de ameaça, quase invocando as figuras do soldado e do cabo que, segundo afirmou Eduardo Bolsonaro em uma das muitas declarações desastrosas de seu clã, conseguiriam sozinhos fechar o STF. Mas sob a palavra “ataque” caberiam também manifestações próprias de uma democracia saudável e vibrante, da crítica jurídica informada ao desaforo de mesa de bar (ou do grupo de Whats­App). Não, não se pode tergiversar com as ameaças que ministros e seus familiares têm recebido, e há de fato indícios de que procuradores cheios de zelo missionário estejam em busca de formas de emparedar o STF. Mas nada disso justifica que o Supremo se entrincheire defensivamente atrás de medidas abusivas para tolher seus críticos.

    “A destruição das instituições e de reputações faz parte de uma campanha de ódio. Temos de saber se não há interesses internacionais por trás disso”, afirmou Dias Toffoli em um momento especialmente constrangedor da entrevista ao Valor. Acusar interesses indevassáveis que moveriam as ações de vozes críticas é próprio não de juízes a serviço de regimes constitucionais democráticos, mas de autocratas que vivem de mobilizar a paranoia das massas. Toffoli mostraria mais clareza e coragem se explicasse que forças são essas que ameaçam o STF (leia a reportagem). De resto, ódio não constitui crime: é perfeitamente legal expressar ódio — ou qualquer outro sentimento —, dentro de certos limites. Nos Estados Unidos, está bem estabelecido o entendimento jurídico de que se pode até usar o rosto do presidente do turno como alvo em estandes de tiro. Em um caso célebre de 1966, Robert Watts, um jovem que protestava contra a Guerra do Vietnã, foi levado a julgamento por ter dito que, se o Exército lhe desse um fuzil, o presidente Lyndon Johnson seria a primeira pessoa em quem ele daria um tiro. A Suprema Corte concluiu que se tratava apenas de uma tirada humorística, não de ameaça efetiva ao presidente.

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    Danilo Gentili: alvo do ministro da Justiça, Anderson Torres
    O OFENSOR –  Gentili: performance grosseira e vulgar — mas deveria ser crime? (Lailson Santos/VEJA)

    O ordenamento jurídico brasileiro é muito diverso, claro, e há quem diga que nos faz falta um dispositivo como a Primeira Emenda à Constituição americana, que proíbe o Congresso de legislar contra a liberdade de expressão. Vidal Serrano, professor de direito constitucional da PUC de São Paulo, discorda: “A montagem das atuais disposições constitucionais brasileiras é absolutamente equivalente à Primeira Emenda americana”, diz. O STF, avalia ele, vinha até se mostrando mais liberal do que o Supremo americano na garantia da liberdade de expressão — pelo menos até o infeliz inquérito conduzido por Alexandre de Moraes. No entanto, diz Serrano, nos Estados Unidos há instituições mais sólidas e uma opinião pública mais versada no exercício das suas garantias constitucionais. Talvez ainda nos falte uma cultura democrática mais ampla — e autoridades públicas que se valem de suas prerrogativas legais para censurar críticos atentam contra essa cultura.

    O ligeiro arroubo censório da dupla Toffoli e Moraes teve lugar quando já se discutia outro caso envolvendo a liberdade de expressão: o humorista Danilo Gentili foi condenado, em primeira instância, a seis meses de prisão por injúria contra a deputada petista Maria do Rosário. O crime de Gentili? Ao receber uma notificação extrajudicial da deputada por ofensas anteriores no Twitter, ele rasgou o documento e o colocou dentro da calça, esfregando o papel no que quer que tenha encontrado lá dentro — e toda a performance foi divulgada em vídeo. Foi um gesto grosseiro, vulgar. Mais grave para quem se apresenta como humorista profissional, não teve a mínima graça. Mas deveria ser um crime? O Human Rights Watch (HRW), organização internacional de defesa dos direitos humanos, considerou que a pena de prisão contraria a liberdade de expressão. Atentados contra a honra, na perspectiva do HRW, deveriam ser da competência do direito cível. O próprio Gentili, porém, já moveu processo criminal contra críticos por injúria.

    Ainda que se considerem abusivos os insultos de Gentili contra a deputada, há uma incômoda assimetria de poder entre os dois. A notificação que o humorista esfregou em suas partes íntimas veio da Procuradoria Parlamentar. Deputados contam com foro privilegiado. É não só compreensível como talvez até saudável que figuras do poder sejam mais expostas à crítica, ao humor, ao franco deboche. E é preciso desarmar as ambições imperiais de políticos e magistrados: eles representam as instituições às quais servem, mas não são a encarnação viva dessas instituições. O ataque a um parlamentar não é o ataque ao Parlamento, e a matéria jornalística que lembra que um ministro do STF já foi o “amigo do amigo do meu pai” não é um ataque ao STF. E ambos, parlamentar e ministro, têm a obrigação de defender o princípio constitucional da liberdade de expressão.

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    Com reportagem de Caio Mattos e Erich Thomas Mafra

    Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631

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