No passado, o Tribunal Superior Eleitoral já tomou decisões importantes que tiveram grande impacto nas eleições presidenciais que se avizinhavam. São exemplos disso a decisão que negou o registro de candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) com base na Lei da Ficha Limpa, em 2018, a que impediu o apresentador Silvio Santos de concorrer por ocupar cargo de direção em emissora de TV, em 1989, e a que rejeitou a cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, em 2017, preservando o mandato do emedebista. Nada se compara, porém, à noite histórica da última terça-feira, 16, por ocasião da posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência da Corte. Em um contexto de ataques frequentes à credibilidade das urnas eletrônicas e aos juízes responsáveis pelo processo eleitoral, o evento se tornou uma eloquente demonstração de força das instituições da República.
Autoridades como quatro ex-presidentes (José Sarney, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, em reunião inédita no TSE), 22 governadores, deputados e senadores, além dos outros dez membros do Supremo Tribunal Federal e vários ministros aposentados, aplaudiram de pé trechos do contundente discurso de Moraes — que, mais do que defender os equipamentos, enalteceu valores democráticos universais. “Somos a única democracia do mundo que apura e divulga os resultados eleitorais no mesmo dia, com agilidade, segurança, competência e transparência. Isso é motivo de orgulho nacional”, disse o magistrado, tendo ao seu lado um visivelmente constrangido Jair Bolsonaro (PL). Moraes também prometeu que a Corte será implacável com a disseminação de fake news. “A Justiça Eleitoral não autoriza que se propaguem mentiras que atentem contra a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Liberdade de expressão não é liberdade de agressão, de destruição da democracia, das instituições, da dignidade e da honra alheias. Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos”, afirmou.
Um dos pontos mais marcantes do evento foi que até inimigos se juntaram para prestigiar a posse. Dilma e Temer, por exemplo, sentaram-se na primeira fileira da plateia, a duas cadeiras de distância um do outro (cuidado adotado pelo cerimonial para evitar saia justa). Eles não se falaram e continuam a não se gostar, mas estavam ali próximos, simbolizando que há limites que não devem ser ultrapassados — e o respeito às instituições é um deles. A robusta reunião de autoridades, aliás, reforçou o isolamento político de Bolsonaro. Ele e seu filho Zero Dois, o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), foram os únicos que não acompanharam a graduadíssima plateia na reação entusiasmada ao discurso.
Bolsonaro sabia que passaria por embaraços na cerimônia e, por isso, segundo interlocutores do governo, cogitou faltar e discutiu o assunto com ministros como Ciro Nogueira (Casa Civil) e Fábio Faria (Comunicações), que também compareceram ao evento. A avaliação foi que, deixando de ir, o presidente reforçaria a ideia de que tem índole golpista. Para alguns bolsonaristas que permaneceram no convescote oferecido a Moraes após a cerimônia de posse, houve até um lado positivo na imagem de Bolsonaro paralisado e com a cara fechada enquanto seu inimigo número 1 no STF era aplaudido por toda a elite política e jurídica: assim, ele poderia reforçar a fama de outsider, muito bem utilizada na campanha de 2018 — apesar de ele ter sido deputado por quase trinta anos. Mas em reuniões internas, políticos envolvidos com a campanha admitiram que Moraes demonstrou prestígio e força política com a realização do evento.
A presença de Bolsonaro no TSE representou o capítulo mais recente de uma articulação política que tenta aliviar o clima de tensão criado pelo próprio presidente e seus seguidores mais radicais. Integrantes de sua campanha destacam que naquele mesmo dia Bolsonaro esteve em um ato eleitoral em Juiz de Fora (MG), local onde foi alvo de uma facada em 2018, e se absteve de atacar as urnas e o Judiciário. Mirou sua artilharia no PT e reiterou sua pauta conservadora. Considerando-se o comportamento errático do capitão, há sempre a dúvida a respeito do comportamento dele daqui por diante. Pelo menos até a última quinta, 18, Bolsonaro não havia voltado a dizer que as urnas são fraudáveis — algo inverídico — ou que os ministros do Judiciário estão atuando para eleger Lula, outra mentira. Políticos do Centrão respiraram aliviados, dentro da avaliação de que os ataques de Bolsonaro não ajudam em nada a sua própria performance. Na opinião deles, que por ora parece estar prevalecendo, é melhor centrar fogo agora em Lula e enaltecer medidas recentes do governo, como o pacote de bondades que aumentou o valor do Auxílio Brasil para 600 reais.
Na quarta 17, o dia seguinte à solenidade no TSE, as palavras de Moraes continuavam ecoando. Conforme informação publicada pela coluna Radar, de VEJA, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), disse a empresários do setor de comunicação que “a posse do novo presidente do TSE foi uma data histórica para o país, com densidade política e institucional”. A primeira agenda de Moraes à frente da Corte foi uma reunião com os presidentes dos TREs (Tribunais Regionais Eleitorais), responsáveis pelas eleições nos estados. Segundo relato de um dos presentes, o ministro ouviu ali vários elogios pela potência de seu discurso na véspera.
Nada na cerimônia ocorreu por acaso. Um exemplo de algo inédito em comparação com solenidades anteriores foi a presença de embaixadores de cerca de quarenta países. A partir de uma ideia do próprio Moraes, a assessoria internacional do TSE se empenhou pela confirmação de presença das autoridades estrangeiras. Tratou-se de uma resposta clara à iniciativa de Bolsonaro de convocar, no mês passado, os representantes das missões diplomáticas em Brasília para uma reunião na qual o chefe do Estado brasileiro falou mal do próprio processo eleitoral do país. Do mesmo modo, também foi simbólica a participação massiva de governadores de estado, incluindo nomes de aliados de Bolsonaro, como Cláudio Castro (PSC-RJ), Ratinho Junior (PSD-PR) e Wilson Lima (União Brasil-AM). Afinal, uma eventual contestação das urnas não atrapalharia somente a eleição para presidente, mas também os pleitos estaduais, o que, por motivos óbvios, ninguém deseja que aconteça.
O evento ocorreu em um momento em que as ameaças à democracia, às instituições e ao processo eleitoral têm passado por uma escalada nas redes sociais. Um levantamento da cientista política Ana Julia Bonzanini Bernardi, do Núcleo de Pesquisa em América Latina da UFRGS, apontou mais de 17 000 publicações nas plataformas YouTube, TikTok, Facebook, Instagram, Twitter e Gettr entre os dias 1º e 14 de agosto que fazem menção ao TSE, ao STF e a ministros como Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. É uma quantidade 25% maior que nas duas semanas anteriores. A grande maioria (cerca de 80%) dos posts está concentrada no Facebook e no Twitter, as duas redes sociais mais populares, e tem origem em perfis de extrema direita, que buscam desmoralizar o processo de votação.
Além de não trazer votos novos a Bolsonaro, a tática de colocar sob suspeita a eleição, muitas vezes à base de informações falsas, certamente ficará mais arriscada com Moraes no TSE. No Supremo, ele já tem sob sua guarda os inquéritos das fake news e das milícias digitais, grupos organizados que têm atacado as instituições. Daqui para a frente, o ministro promete ser ainda mais implacável contra qualquer ameaça, sobretudo a menos de dois meses para as eleições. É uma postura que só pode merecer aplausos dos brasileiros que confiam em nossa democracia.
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803