Não bastasse a crise econômica e sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, o Brasil enfrentou recentemente um sério risco de ruptura institucional. Contrariado com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que usurpariam competências do presidente da República e teriam o objetivo de desestabilizar o seu governo, Jair Bolsonaro radicalizou o discurso, redobrou a aposta no confronto e — com base numa interpretação capenga da Constituição — cogitou usar as Forças Armadas para intervir no Poder Judiciário. As ameaças eram feitas à luz do dia. Em abril, Bolsonaro participou de uma manifestação em frente ao Quartel-General do Exército que pedia, entre outras coisas, o fechamento do Supremo e do Congresso. Em maio, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, divulgou nota a fim de alertar sobre “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” caso a Justiça determinasse o confisco do celular do presidente, o que não ocorreu. Sob a alegação de ser vítima de uma conspirata destinada a derrubá-lo do cargo, Bolsonaro, apoiado pelos ministros militares, revidava com a insinuação de um golpe.
“Foi um momento em que estivemos muito perto da ruptura institucional”, admitiu a VEJA um dos principais auxiliares do presidente. Para sorte do país, o momento, agora, é outro. Premido pelas circunstâncias, Bolsonaro deixou de lado o radicalismo e substituiu a estratégia do confronto pela negociação política, aquela que ele, como candidato, dizia repudiar. O resultado, por enquanto, é positivo: o cenário de instabilidade de meses atrás deu lugar à retomada do diálogo entre as autoridades dos três poderes, o que abre espaço para que elas possam finalmente concentrar energia nas demandas mais urgentes do país, da recuperação econômica ao combate da desigualdade social, passando pela modernização do Estado. “Sem a política, não há como fazer nada. Se fica um com birra para cá e o outro com birra para lá, sem conversar, o Brasil perde muito”, afirma o senador Renan Calheiros (MDB-AL), um dos mais experientes parlamentares do país, que até ontem se alinhava com a oposição. Desde o início de seu mandato, Bolsonaro nunca fez tanta política como agora. Nos últimos dias, ele escolheu um nome para o cargo de ministro do Supremo que agrada tanto a integrantes da Corte quanto a congressistas, inclusive do PT. Por meio de aliados, Bolsonaro também reuniu numa mesma mesa o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro da Economia, Paulo Guedes, que ficaram praticamente um ano inteiro trocando provocações e impropérios em público.
Parece pouca coisa, um caso de acerto de contas na seara pessoal, mas não é. Maia e Guedes compartilham da defesa do teto de gastos e da reforma tributária. Em parceria, podem trabalhar por essas duas medidas e, de quebra, pela aprovação de uma fonte de receita para a expansão do programa de assistência social do governo. Essa agenda econômica foi o cardápio de um jantar no apartamento do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas (que já ameaçou reprovar as contas do governo) na segunda-feira 5. Além do anfitrião, de Maia e de Guedes, estavam presentes mais dois ministros do TCU (José Múcio Monteiro e Vital do Rêgo), o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo (que, em entrevista a VEJA, em junho, advertiu do risco da ruptura institucional caso o STF “esticasse a corda”), o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (que permitiu a instalação da CPI das Fake News), e parlamentares influentes. O convescote foi precedido por um encontro, no sábado 3, na casa do ex-presidente do STF Dias Toffoli (responsável pela abertura de um inquérito que investiga ameaças aos ministros do Supremo), do qual o próprio Bolsonaro era o convidado principal.
Recolher as armas não foi uma tarefa fácil diante de um presidente que fez campanha com discurso agressivo e, em quase trinta anos como deputado federal, deu sucessivas demonstrações de desapreço à democracia e às liberdades individuais. VEJA apurou que a mudança de postura de Bolsonaro foi provocada por uma decisão do STF. Em 27 de maio, o ministro Alexandre de Moraes expediu mandados para a Polícia Federal coletar provas sobre 21 pessoas envolvidas em atos antidemocráticos. Entre os alvos, destacavam-se empresários, blogueiros e parlamentares ligados a Bolsonaro. No Planalto, começou a circular a informação de que Alexandre de Moraes poderia prender o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, suspeitos de organizar as milícias digitais do bolsonarismo. “O Alexandre é louco o suficiente para prender seus filhos. Quanto mais o senhor grita, mais ânimo ele terá para investigar”, disse um aliado ao presidente. Pela versão que ganhou o palácio à época (o que não significa que fosse verdade), Moraes tinha elementos para decretar a prisão de Eduardo e Carlos no âmbito do inquérito das fake news, do qual o ministro é relator.
Por lei, deputados federais só podem ser presos em flagrante de crimes inafiançáveis. No caso de vereadores, a imunidade protege apenas a manifestação de opiniões. Eduardo e Carlos possivelmente seriam enquadrados na Lei de Segurança Nacional e, depois, mandados à cadeia. Os humores de Alexandre de Moraes seriam ainda mais preocupantes. Pessoas próximas ao presidente fizeram chegar a Bolsonaro que, se ele insistisse em ameaçar as instituições, poderia ser cassado. O caminho para tanto seriam as ações em tramitação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que apuram um possível financiamento ilegal de sua campanha presidencial. Não se sabe ao certo de quanta munição os investigadores do STF de fato dispõem, mas há pistas na praça. Em depoimento à Polícia Federal no fim de setembro, o deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), um antigo apoiador do presidente, forneceu números de IPs de computadores que teriam participado de ações de disseminação de fake news na internet e seriam ligados ao deputado Eduardo Bolsonaro. O fato é que o temor com as possíveis ações de Alexandre de Moraes pavimentou o caminho para um armistício. O primeiro passo foi isolar os radicais e se afastar de novos confrontos.
Já em 17 de junho, Bolsonaro escolheu palavras moderadas e conciliatórias para o discurso de posse do deputado Fábio Faria (PSD-RN) no cargo de ministro das Comunicações. O presidente estendeu a mão ao diálogo apesar de, momentos antes da cerimônia, ter sido cobrado por seu filho Carlos, defensor ferrenho do discurso contra o establishment e idealizador de ataques ao Congresso e ao Supremo. Coube ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, dar um choque de pragmatismo no Zero Dois: “Carlos, você não está entendendo. O seu pai tem de buscar a conciliação. O que você quer? Fechar o STF? Se isso continuar, o seu pai pode ser preso”. Dois dias depois, Jorge Oliveira e os ministros André Mendonça (Justiça e Segurança Pública) e José Levi (Advocacia-Geral da União) viajaram a São Paulo para se reunir com Alexandre de Moraes. Durante a conversa, o magistrado foi informado de que o então titular da Educação, Abraham Weintraub, seria exonerado. Weintraub era um dos expoentes da ala ideológica do governo e, na famosa reunião ministerial de abril, defendeu a prisão para os integrantes do Supremo.
A boa convivência entre os poderes só aumentou desde então. Bolsonaro escolheu para substituir o decano Celso de Mello, autor de uma das manifestações mais contundentes contra a ofensiva antidemocrática do presidente (ele chegou a comparar o presidente a Hitler), o desembargador Kassio Nunes Marques. Depois de convidá-lo para o cargo, Bolsonaro levou o magistrado para um encontro com os ministros do Supremo Gilmar Mendes (que, durante a pandemia, classificou o governo como genocida) e Dias Toffoli, que aprovaram o seu nome. O beija-mão foi precedido, semanas antes, por uma conversa sincera e pacífica entre um ministro de tribunal superior e o mandatário sobre o cessar-fogo. Disse o magistrado: “Existe uma rede de instituições que têm um ponto em comum: não aceita ameaça à democracia. Não temos raiva do senhor. Nós temos medo do senhor. E quem tem medo atira primeiro”. Bolsonaro respondeu: “E eu tenho medo de vocês, pô”. Kassio Nunes, cuja posse no STF depende de aprovação do Senado, entra em cena como parte do esforço para exorcizar esses fantasmas. Convertido em base governista depois de ser agraciado com cargos e verbas, o chamado Centrão também aprovou a indicação do desembargador. De forma geral, a classe política está em festa. Motivo: Nunes teria prometido cerrar fileiras contra as arbitrariedades cometidas pela força-tarefa da Lava-Jato (veja a reportagem na pág. 38). “Há um ano e meio, era o juiz Sergio Moro que ia para o Supremo. Você acha que a classe política não vai comemorar que não é mais ele?”, afirma um parlamentar, que responde a um processo por organização criminosa.
Além de mexer uma peça importante na engrenagem do Judiciário, Bolsonaro acelera seu noivado com os políticos tradicionais. Os radicais, que antes eram o alicerce de seu governo, deram lugar aos chamados profissionais. Essa mudança ficou clara na troca do cargo de líder do governo na Câmara, com o neófito Vitor Hugo (PSL-GO) cedendo o posto ao veterano Ricardo Barros (PP-PR), investigado pela suspeita de recebimento de propina. Arthur Lira e Ciro Nogueira, caciques do PP e réus na Lava-Jato, também se tornaram conselheiros de Bolsonaro. “O pessoal acha que a formação da base foi para impedir o impeachment, mas não foi. O problema era maior. Sem base, o presidente não iria conseguir governar nem sonhar com uma reeleição”, diz um auxiliar de Bolsonaro. Ele arremata: “O presidente não se importa se os seus aliados são réus em processos criminais. Ele diz que isso faz parte da vida política. Ele está mais interessado nos resultados que estão sendo entregues no Congresso”.
O próprio Bolsonaro fez questão de ratificar essa análise. Na quarta-feira, sem ruborizar a face, declarou: “É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho, dizer a essa imprensa maravilhosa que eu não quero acabar com a Lava-Jato. Eu acabei com a Lava-Jato porque não tem mais corrupção no governo”. Atendidos, os parlamentares estão entregando resultados ao governo. O novo marco legal do saneamento básico, por exemplo, foi aprovado. A agenda de reformas segue em compasso de espera, mas o presidente pretende patrocinar uma nova ofensiva para votá-la depois das eleições municipais. Ele quer aproveitar o clima de entendimento com parcelas crescentes do Parlamento. Segundo um monitoramento feito pelo Planalto, os partidos governistas têm votado com lealdade. A taxa de fidelidade do PP do líder Ricardo Barros foi de 95% numa votação. A do PSD do ministro Fábio Faria, de 83%. Com aprovação popular na casa de 40%, Bolsonaro também promove ajustes internos em sua equipe. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, recebeu uma ordem expressa para ficar em silêncio depois de afirmar, em entrevista recente, que o “homossexualismo” acontece em “famílias desajustadas”. Bolsonaro, que já foi acusado de homofobia, ficou contrariado com a declaração e repreendeu pessoalmente o auxiliar.
Na guerra travada entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), defensor de mais gasto público como resposta à crise, o presidente — também numa atitude mais madura — desempenha o papel de equilibrista. Ele não quer que as divergências entre os ministros sejam tratadas em público, mas, ao mesmo tempo, alimenta a rixa nos bastidores. Para provocar Guedes, Bolsonaro costuma dizer: “E aí, PG, você ainda quer indicar o Marinho para a Casa Civil?”. A resposta-padrão do chefe da equipe econômica é dizer, bem ao seu estilo, que tem saudade de Gustavo Canuto, o antecessor de Marinho no ministério: “Canuto era pivete. Marinho é chefe de gangue”. O fato de o presidente dedicar mais tempo a questões como essa do que a pretensas conspirações ensandecidas é um alento. Como bem observa a Carta ao Leitor desta edição (leia na pág. 9), “saber, ao menos, que a democracia não sofre riscos, que os poderes começam a trabalhar em harmonia, é um alívio e, diante do passado recente, um baita avanço”. Melhor para o Brasil.
Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708