Desde o início de seu mandato, Jair Bolsonaro aposta no confronto e testa os limites das instituições. O roteiro é conhecido: ele escolhe um inimigo de ocasião, parte para o ataque com o auxílio de sua milícia digital e mergulha o país na crise da vez. Instalada a confusão, assessores do presidente saem a campo numa tentativa de conter danos e reconstruir pontes, desempenhando o papel de bombeiros que jamais conseguem conter o responsável pelo incêndio. A lógica das investidas de Bolsonaro também é conhecida: quanto mais fraco ele está, mais agressivo fica. E é por isso que o presidente não abandona a sua recente cruzada contra integrantes do Judiciário. Em queda nas pesquisas, Bolsonaro precisa manter sua base mais radical unida, sob pena de perder o apoio popular que lhe resta — e que hoje lhe garante uma vaga no segundo turno da eleição presidencial e, de quebra, certa proteção contra um processo de impeachment.
O alvo da nova ofensiva presidencial são os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, chefe do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e Alexandre de Moraes, que comandará o TSE durante a campanha de 2022. Para Bolsonaro, a dupla foi determinante para a rejeição da proposta de emenda constitucional que instituía o voto impresso, tema que substituiu a cloroquina no universo de obsessões presidenciais. Por obra da mesma dupla, o presidente passou a ser investigado formalmente no STF no inquérito das fake news, acusado de difundir informações falsas com o objetivo de colocar em dúvida a integridade das urnas eletrônicas e a confiabilidade do sistema eleitoral. Derrotado no Congresso e acossado na Justiça, o presidente resolveu reagir e anunciou que apresentará pedido de impeachment de Barroso e Moraes ao Senado. Ele também se empenha na convocação de uma manifestação popular, marcada para o feriado de 7 de Setembro, cujo objetivo é defender o seu governo e fazer pressão sobre o Legislativo e o Judiciário. Nas redes sociais, bolsonaristas tratam o ato como uma possibilidade de “contragolpe”.
Foi o suficiente para que até o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um político que faz de tudo para não bater de frente com Bolsonaro, se postasse como biombo à ofensiva presidencial. Em público, Pacheco disse que rejeitará eventuais pedidos de impeachment de ministros do STF e lembrou que cabe ao Senado analisar também o afastamento do presidente da República. Pau que dá em Chico, como bem lembrou a senadora Simone Tebet (MDB-MS), pode dar também em Francisco. Em conversas reservadas, Pacheco lembrou que a insistência no confronto pode prejudicar o avanço de pautas importantes para o país, como a agenda econômica, e para o próprio presidente, como as indicações de André Mendonça e Augusto Aras para, respectivamente, o Supremo e a Procuradoria-Geral da República (PGR). Até o fechamento desta edição, Bolsonaro insistia na promessa de pedir o impeachment de Barroso e Moraes. Seus assessores, no entanto, já estavam trabalhando para tentar, mais uma vez, acalmar os ânimos. Em conversas com integrantes do Judiciário e da cúpula do Congresso, eles alegaram que a retórica presidencial não é prenúncio de um golpe de Estado. Seria apenas uma estratégia para manter a base mais fiel de apoio arregimentada
Desde o fim do ano passado, a popularidade do presidente e de seu governo está derretendo. Pesquisa encomendada pela XP mostra que a reprovação à gestão subiu para 54%, enquanto a aprovação caiu para 23%. Uma estimativa dimensiona o tamanho da erosão: o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, costuma dizer que Bolsonaro precisa de pelo menos 40% de aprovação para ter chances de ser reeleito. Hoje, o ex-capitão perde de todos os adversários nas simulações de segundo turno, conforme a sondagem da XP. Fiador do acordo entre o governo e o Centrão, Ciro Nogueira assumiu a linha de frente na tentativa de retomada de diálogo com os outros poderes. Esse trabalho foi iniciado quando o voto impresso ainda era a pauta dominante e foi acelerado nos últimos dias. Há cerca de três semanas, o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, reuniu-se com o comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Jr., o mais bolsonarista entre os chefes das Forças Armadas. Na sequência, foram procurados por emissários do presidente os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Na quarta-feira 18, Ciro Nogueira conversou com o presidente da Corte, Luiz Fux. Após o encontro, o ministro da Casa Civil publicou uma foto em sua rede social e escreveu que há um “consenso” sobre o que une o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Os dois posaram segurando a Constituição. Com pequenas variações, o recado a todos foi o mesmo: Bolsonaro não deve recuar de sua retórica beligerante porque precisa manter a grei unida, mas não quer briga com os poderes.
Aparentemente, esses encontros surtiram efeito. Barroso, por exemplo, conversou com o ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, a quem pediu a indicação de um militar para integrar uma comissão sobre transparência nas eleições. Em depoimento a uma comissão da Câmara, o mesmo Braga Netto negou que as Forças Armadas possam atuar como uma espécie de poder moderador em cenários de crise e negou que tenha dito que, sem voto impresso, não haveria eleição. Houve uma baixada de bola também no Senado. Enviados governistas procuraram integrantes da CPI da Pandemia, que tem contribuído para desgastar a imagem de Bolsonaro, para pedir moderação. A Omar Aziz (PSD-AM), presidente do colegiado, e Eduardo Braga (MDB-AM) fizeram chegar o recado de que ambos disputarão eleição no ano que vem, já conseguiram o palanque que desejavam e, de agora em diante, só têm a perder em manter o clima de beligerância com o Planalto. “O relatório da CPI vai ser ruim para o presidente Bolsonaro, mas pode ser menos incisivo”, declara um auxiliar do presidente. “É tudo questão de dialogar, de fazer política.”
Pode ser só coincidência, mas a CPI cancelou uma acareação entre o ministro do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, e o deputado Luis Miranda (DEM-DF) e anunciou seu encerramento em 16 de setembro, antes do prazo permitido para o seu funcionamento. A possibilidade de convocação do ministro Braga Netto e a reconvocação do ex-ministro Eduardo Pazuello também perderam força. O problema de toda essa negociação está em Bolsonaro. Enquanto seus assessores dialogam, o presidente tende a insistir no confronto para entreter seus radicais. Em entrevista desastrosa a uma rádio, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, disse não ver a possibilidade de uma intervenção militar “no momento”, mas não descartou a medida, que “poderia acontecer em um dado muito grave”. Além de estratégia política, a insistência do presidente em intimidar as instituições encerra um traço de sua personalidade.
Afeito a teorias da conspiração, Bolsonaro tem certeza de que ministros do STF e do TSE trabalham para tirá-lo do poder. Ele dá como certo que o ministro Luís Roberto Barroso e o vice-presidente Hamilton Mourão combinaram na surdina, na terça-feira 10, a prisão preventiva de Roberto Jefferson, ocorrida três dias depois por ordem de outro ministro, Alexandre de Moraes. Bolsonaro também acredita que Mourão, Barroso, Moraes e o corregedor do TSE, ministro Luis Felipe Salomão, que deixará o cargo em outubro próximo, estão mancomunados para abreviar seu mandato presidencial — e blindar o vice da cassação — por meio de ações na Justiça Eleitoral. A tese é compartilhada por generais como Heleno, que despacham como ministros no Planalto, embora em público o discurso seja outro.
Em seu pior momento desde o início do mandato e cercado de fantasmas reais e imaginários, o presidente tende a insistir no confronto, enquanto seus bombeiros prometem a moderação que falta ao chefe. O ministro Ciro Nogueira e companhia podem até costurar acordos momentâneos, mas há certo consenso de que esses durarão até a próxima crise. “Estamos gastando energia enxugando gelo. Quem briga não constrói”, resumiu um ministro do STF a VEJA.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752