Nada como uma década depois da outra. Em 2005, o então presidente venezuelano Hugo Chávez, apoiado por Brasil e Argentina, comemorou o “enterro” da Área de Livre Comércio das América (Alca), um projeto do então presidente americano Bill Clinton que nunca saiu do papel e que era visto na época como atestado de submissão das economias latino-americanas ao grande irmão do Norte. Pois na terça-feira 30, um comentário do agora presidente Donald Trump alvoroçou setores da economia nacional pelo que embute de perspectiva na direção exatamente oposta à de catorze anos atrás: a de que se firme um tratado comercial de largo alcance com os Estados Unidos. “Vamos trabalhar por um acordo de livre-comércio com o Brasil”, disse Trump, em uma entrevista no jardim da Casa Branca. Naquele momento, seu secretário de Comércio, Wilbur Ross, desembarcava aqui para encontros com o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, em Brasília.
Os empresários brasileiros esfregaram as mãos. Defensora de um acordo desse tipo, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) tratou a fala de Trump como a “melhor notícia da década” e despachou seu lobby em favor do início das negociações para Brasília. O Departamento do Comércio não é o órgão encarregado de negociar pactos — essa tarefa recai sobre a Representação Comercial dos Estados Unidos (USTR). Mas a coincidência das palavras do presidente americano com a presença de Ross em Brasília — e, sim, para falar de comércio, embora com outra ênfase — deixou no ar a impressão de que desta vez vai: o ambicionado acordo pode se concretizar. “Mesmo saindo do zero nas discussões com os Estados Unidos e tendo de contornar as incertezas das eleições argentinas e americanas pela frente, começar o processo é positivo”, diz Thomas Zanotto, diretor de comércio exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
No encontro com Bolsonaro no Palácio do Planalto, Ross cuidou mesmo foi de levantar suspeitas quanto ao recente acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, um pacote negociado durante décadas e que finalmente recebeu seu ponto-final — passa agora a depender da aprovação, uma a uma, de todos os 32 governos envolvidos, processo que ainda levará um bom tempo. O secretário americano fez um alerta sobre as “pílulas de veneno” nele contidas, referindo-se a cláusulas que podem, de alguma maneira, dificultar as trocas entre o Mercosul e os Estados Unidos. Bolsonaro, que é unha e carne com Trump, considerou o aviso procedente. “Todo mundo está preocupado com armadilhas, que talvez possa haver no acordo com o Mercosul algum problema para assinar um acordo com os Estados Unidos”, disse. Analistas não acreditam que o alinhamento do governo com a política americana venha a emperrar um tratado já concluído e saudado em toda parte como um enorme avanço para o país. “Dá para conciliar as coisas. O que combinamos com Ross foi que estamos oficialmente começando a negociar com os Estados Unidos”, afirmou Guedes.
A abertura da economia brasileira, uma das mais protecionistas do mundo, está na agenda de Guedes desde a campanha presidencial de 2018. Não será a primeira: Fernando Collor de Mello implantou em 1990 uma tentativa unilateral que se provou desastrosa. Para não cair no mesmo erro, o governo terá de seguir a trilha das negociações, sempre no âmbito do Mercosul — pelas regras do bloco, ou todos aprovam, ou não há acordo. Um ou outro pacto bilateral ainda em vigor no Brasil foi firmado antes disso. O pacote negociado com a União Europeia certamente incomoda Washington: posto em prática, ele garantirá a preferência no mercado brasileiro pelas manufaturas da UE, o que prejudicará as importações de concorrentes americanos. Em 2018, os Estados Unidos registraram seu 11º saldo positivo seguido nas trocas anuais de bens com o Brasil, de 8,5 bilhões de dólares. Trump, que se tem na conta de excelente negociador, não quer perder essa vantagem.
O setor produtivo brasileiro vê nesse conjunto de circunstâncias sua grande chance de conquistar espaço no segundo maior parceiro comercial do país, depois da China. Falta combinar com os americanos, que usam e abusam de tarifas como arma de negociação e já protagonizaram vários embates no setor agropecuário, em que os dois países competem diretamente por mercados. O fato de o Brasil assumir neste semestre, pelo sistema de rodízio, a presidência do Mercosul é visto como mais um ponto positivo. Mas, apesar do otimismo reinante, esse incipiente início de conversa é apenas isto: o começo de uma longa e difícil conciliação de interesses diversos e, muitas vezes, conflitantes.
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646