O desgastante processo de saída do Reino Unido da União Europeia (UE), o Brexit, ganhou novo capítulo hoje com a publicação de um rascunho do futuro acordo pelo bloco que, pela primeira vez, traz informações mais claras sobre como a UE vê o futuro da fronteira entre a Irlanda do Norte (parte do Reino Unido) e a República da Irlanda, independente e que seguirá sendo parte da união. A primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, classificou o plano como “inaceitável”, atraindo críticas imediatas de todo o espectro político britânico e fragilizando ainda mais seu governo.
Entre as propostas do documento de 120 páginas, indica-se que a Irlanda do Norte deverá continuar sendo considerada parte do território aduaneiro europeu. Isso significa, na prática, separar as leis econômicas da Irlanda do Norte do restante do Reino Unido — tema espinhoso que quase fez desandar a rodada de negociações do Brexit em dezembro. O assunto é particularmente desafiador para May, pois seu governo de minoria depende do apoio de um partido da Irlanda do Norte –o Partido Unionista Democrático (DUP, na sigla em inglês)— fortemente avesso a qualquer mudança de status que diferencie o país do restante do Reino.
De acordo com a primeira-ministra, a proposta da UE “ameaça as integridades constitucionais do Reino Unido “. “Nenhum primeiro-ministro poderia concordar com isso”, acrescentou.
O DUP também condenou a proposta imediatamente, dizendo que ela enfraquece o status da Irlanda do Norte dentro do Reino Unido.
Para Nigel Dodds, vice-presidente da sigla, a proposta da União Europeia efetivamente cria uma “fronteira dura” entre a Irlanda do Norte e o restante do Reino. “Nós não deixamos a União Europeia para que eles supervisionassem a separação do Reino Unido”, disse.
A proposta da União Europeia é que além de manter as normas de verificação de entrada e saída de bens como são hoje, uma série de regras do mercado único, comum a todos integrantes do bloco, continuem sendo aplicadas na Irlanda do Norte. Isso permitiria a manutenção de uma fronteira aberta com a República da Irlanda, ao sul, garantindo a fluidez de bens e mercadorias entre as duas partes da ilha da Irlanda, que teriam as mesmas regras para entrada, tarifação e venda de produtos. O problema que essa opção cria é que, caso o Reino Unido opte por normas e tarifas diferentes da UE após o Brexit, seria necessário implementar controle alfandegário doméstico em mercadorias, bens e serviços com origem ou destino na Irlanda do Norte.
Até o momento, tem se mostrado impossível conciliar a ausência de uma “fronteira dura” –seja entre as duas Irlandas, seja entre a Irlanda do Norte e o restante do Reino Unido– com a promessa de May de que seu país não mais fará parte da união aduaneira que liga os países do bloco europeu.
Políticos de ambos os lados temem que a instauração de uma fronteira possa ameaçar a paz na ilha da Irlanda.
“Esse rascunho não traz surpresas para nossos colegas britânicos. Ele inclui a posição da União Europeia que já era conhecida”, disse Michel Barnier, principal negociador do Brexit pelo bloco. Ele esclareceu que a União Europeia aguarda propostas ou soluções alternativas por parte dos britânicos.
Para entender: Reino Unido, Grã-Bretanha, Inglaterra e Irlandas
A pouco mais de 100 km a noroeste do continente europeu, em meio a um arquipélago de mais de 6.000 ilhotas chamado de Ilhas Britânicas, duas ilhas maiores se sobressaem: a ilha da Grã-Bretanha (com 209.331 km2) e, imediatamente a seu oeste, a ilha da Irlanda (com 84.421 km2).
Ambas ilhas formaram o que era o centro do vasto e antigo Império Britânico.
A ilha da Grã-Bretanha é dividida em três partes chamadas de “países constituintes” ou de “nações originárias”: a Inglaterra (com Londres como capital), a Escócia (cuja capital é Edimburgo) e o País de Gales (com a cidade de Cardiff como capital). Apesar de serem chamadas de “países” ou “nações”, cada uma dessas três partes é análoga a um estado no Brasil, sem independência própria ou soberania — o termo “país” (em vez de estado ou província) deriva do fato de cada uma dessas unidades territoriais terem sido independentes antes da unificação sob a Coroa britânica, em 1707.
A ilha da Irlanda, por sua vez, é dividida em duas partes. Ao norte, uma pequena porção da ilha também pertence à Coroa britânica: a Irlanda do Norte (capital: Belfast). Ao sul, independente e ocupando pouco mais de 83% do território total da ilha, está a República da Irlanda (com Dublin como capital).
A Irlanda do Norte é a quarta “nação originária” e junto com Inglaterra, Escócia e País de Gales forma o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, este sim, totalmente independente e soberano (ou seja, um país no termo pleno da palavra, equivalente ao Brasil). A capital do Reino Unido como um todo também é Londres.
Com o Brexit, o Reino Unido (incluindo a Irlanda do Norte) deixa de ser membro da União Europeia, enquanto a República da Irlanda permanece no bloco. A fronteira entre as duas Irlandas passa a ser a única divisão terrestre entre a União Europeia e o Reino Unido.
(Com Estadão Conteúdo)