De Pablo Neruda, no capítulo XV da obra mais celebrada do poeta chileno, o Canto Geral: “Renasci muitas vezes, desde o fundo de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio das eternidades que povoei com as minhas mãos, e agora vou morrer, sem nada mais, com terra sobre o meu corpo, destinado a ser terra”. Não seria o caso de dizer, como no poema, que Neruda tenha metaforicamente renascido — mas ele parece estar pronto para ser enterrado uma segunda vez. Na semana passada, a Corte de Apelações de Santiago reabriu as investigações sobre a morte de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, seu nome de batismo, apenas doze dias depois do golpe militar de 11 de setembro de 1973, que depôs o presidente socialista Salvador Allende para a ascensão autoritária de Augusto Pinochet.
De acordo com o atestado de óbito, Neruda teria morrido de metástase de um câncer de próstata, em estado de caquexia, o que pressuporia extrema perda de peso e massa muscular. Em 2011, contudo, o motorista do escritor denunciou um suposto envenenamento. No ano passado, depois de uma sucessão de estudos forenses e análise de assinaturas de documentos médicos, e muito vaivém, deu-se como encerrado o ruidoso caso. Ele teria morrido naturalmente, aos 69 anos — e a proximidade com a tragédia de Allende, de quem era amigo e colaborador, fora mera coincidência.
A pressão política — Neruda é um dos símbolos do período de Allende — forçou o novo passo, agora. Decidiu-se abrir perícia numa frente em especial: em 2017, análises indicaram a presença, em um dos dentes molares do artista, da bactéria Clostridium botulinum, embora não fosse possível identificar a origem. Estudos mais aprofundados, porém, abriram uma nova brecha de investigação: o tipo identificado é o Alaska E43, o mais mortal, e teria “causa endógena”, ou seja, estaria no organismo de Neruda antes de ele parar de respirar. Somou-se a essa revelação um outro fato: Neruda não morreu magérrimo como anunciado, é o que apontam as marcas do cinto de calça levado ao esquife. É o que mostram, também, as fotos feitas pelo brasileiro Evandro Teixeira, na Clínica Santa Maria, com a viúva Matilde debruçada no caixão aberto. “A decisão da Justiça é boa notícia para os descendentes de Neruda, mas também para os direitos humanos, tão vilipendiados no mundo todo”, diz Elizabeth Flores, advogada da família.
Como nem tudo são flores, a segunda morte de Neruda — que pode, sim, ter um significado ideológico em um país em permanente polarização — dá as mãos para uma faceta incômoda do Nobel de Literatura de 1971, atalho para seu “cancelamento” (muitos chilenos preferem louvar, hoje, Gabriela Mistral, também vencedora do Nobel). Há bons motivos para o julgamento de Neruda: ele abandonou, logo ao nascer, a filha com hidrocefalia, fruto do seu primeiro casamento. A menina morreria com 8 anos de idade. Em Confesso que Vivi, autobiografia lançada postumamente, ele admite ter estuprado uma mulher no Ceilão, em 1929, quando servia como diplomata. Há uma certeza: em serenidade ele não estará — “O poeta nasce da paz como o pão nasce da farinha”, escreveu —, porque o jogo da política e dos costumes não é para amadores.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882