Nas vinícolas da Europa, o clima é de desolação, e não é (só) por causa do novo coronavírus. “Parte o nosso coração”, suspira Alexandre They, presidente da Federação de Produtores Independentes de Vinho da região de Aude, no sul da França, referindo-se aos caminhões-pipa que vão passando e recolhendo litros e litros de bom vinho francês, prontinho para ser consumido. Seu destino é a destilaria mais próxima, onde a bebida vai virar álcool industrial e, eventualmente, ser convertida em álcool em gel, para higienizar mãos e superfícies em tempos de Covid-19. Com a nova safra a caminho, a saída dos vinicultores está sendo dar esse destino meritório mas inglório a um estoque calculado em 1 bilhão de litros em todo o continente.
A transformação do vinho em álcool entrou na conta da Destilação de Crise, mecanismo usado em outras ocasiões, embora nunca em tão grande escala, pelo qual a produção perdida é subsidiada à base de menos de 1 euro por litro — pouco, mas melhor do que nada. O programa é financiado em conjunto pelos governos e pela União Europeia, que neste ano lhe destinou 155 milhões de euros. Evidentemente, os rótulos consagrados não estão nessa dinâmica. “Os produtores dão um destino à bebida estocada, têm a chance de regular a produção dos próximos anos e podem até reduzir a área de plantio, o que também é subsidiado pela UE”, explica Philippe Bontems, especialista em setor alimentício da Escola de Economia de Toulouse. Na França, 33 destilarias estão trabalhando a pleno vapor para dar conta da demanda — só na Alsácia, uma das regiões mais atingidas pela crise, 5 000 vinícolas estão se desfazendo de estoques.
A indústria francesa de vinhos já vinha sentindo o baque da sobretaxa de 25% imposta no fim do ano passado pelo governo de Donald Trump, em represália à aprovação de um novo imposto sobre transações digitais na França que afetou as grandes empresas americanas de tecnologia. Com a quarentena, o fechamento dos bares e restaurantes e o adiamento das festas de casamento e outras reuniões sociais abriram um buraco nas vendas que nem a alta do consumo em casa, estimulada pelo confinamento, preencheu. “A indústria europeia é muito dependente dos restaurantes, porque é neles que os vinhos mais caros são vendidos”, diz Nikolaos Georgantzís, da Escola de Administração da Borgonha, em Dijon.
Esperar a pandemia passar para vender o excedente não é opção, dizem os especialistas, porque a súbita inundação do mercado com o produto causaria uma derrubada nos preços. A crise atinge sobretudo os pequenos produtores, que enfrentam o dissabor adicional do cancelamento das feiras onde costumam fazer a maior parte de seus negócios. Além de tudo, existe um problema que não é problema: a safra deste ano, beneficiada pelo tempo ensolarado, foi precoce e abundante, o que tornou mais premente a necessidade de espaço para a nova produção. “Vinho requer um ano de trabalho e um ano de cultivo, e não gastamos esse tempo todo para vê-lo virar álcool. Mas agora não teve outro jeito”, lamenta They. Resta abrir uma garrafa, erguer um brinde ao álcool em gel e seguir em frente. Santé!
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699