Para os bouquinistes, Paris não será uma festa. Personagens indissociáveis da paisagem da cidade, os mais de 900 quiosques de metal verde a emoldurar as margens do Rio Sena foram inscritos como patrimônio mundial da Unesco em 1991. Há mais de 450 anos, os livros, selos e gravuras celebram amores e dores. O problema, agora: a prefeitura decretou que pelo menos 600 vendedores serão tirados de seus cantos durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, em 26 de julho. O motivo: segurança e visibilidade, de modo a facilitar a movimentação dos agentes de polícia e a aproximação de turistas (que, em alguns casos, desembolsarão inacreditáveis 2 700 euros).
Confusão, e das grandes, porque os organizadores da competição mexeram em vespeiro sentimental. “Por acaso alguém pensou em desalojar a Notre-Dame ou a Torre Eiffel?”, indaga o livreiro Albert Abid, de 62 anos, cioso de seu trabalho. Depois de muita grita, deu-se um jeito de desenvolver um método de arrancar as instalações com um guindaste, colocá-las em lugar seguro para então serem reinstaladas, com alguma indenização. Nada feito. As autoridades parecem não ter percebido como o tempo corre para a turma tão corporativa, tão romântica. “São décadas para organizar lado a lado os livros de bolso com as coleções Pléiade, quadrinhos e gravuras”, lamenta Abid. “Como vou conseguir reorganizar como se deve?”
O drama dos bouquinistes — sim, é dramático — é anedota real que ajuda a entender o tamanho, para o bem e para o mal, da decisão de oferecer ao mundo a mais diferente das festas de abertura da história olímpica. De leste para oeste, da direita para a esquerda, dentro de embarcações, os atletas sairão da altura da Ponte de Austerlitz até o Trocadéro, na frente da Torre Eiffel, em percurso de 6 quilômetros (veja no mapa). No caminho, de um lado e do outro, passarão pelo Museu d’Orsay, o Museu do Louvre, a Notre-Dame em obras etc. Tudo muito bacana — uau! —, não fossem nós difíceis de desatar. O principal obstáculo é o esquema de vigilância necessário para proteger a travessia de supostos atentados. É como se, mal comparando, ao longo de duas horas o Lincoln conversível de John Kennedy, na forma de barcos, é claro, desfilasse a bel-prazer na mira de um atirador alucinado, de um lado e outro do Sena. Não por acaso, um dos esquemas de segurança montados para os Jogos, e sobretudo para o rio, é um sistema militar de proteção contra drones de todos os tamanhos, como se fosse um escudo virtual a envolver a cidade. “É a pior das configurações para um evento”, diz um dos responsáveis pelo policiamento. “Trata-se de controlar o que estará navegando, o que estará em terra firme, nas beiradas, mas também nos edifícios, além de riscos aéreos. É um desafio inédito.”
Em dezembro do ano passado, um homem armado com uma faca e um martelo matou um turista alemão nas cercanias da Torre Eiffel. O suspeito, um cidadão francês de 26 anos, havia, dias antes, declarado lealdade ao Estado Islâmico em um vídeo postado nas redes sociais. O susto parece não ter mudado os planos. “Não temos um plano B para a abertura”, disse Amélie Oudéa-Castéra, ministra dos Esportes da França. Tudo indica, segundo a certeza da ministra, não haver mais recuo, e à beleza do espetáculo se somará algum temor. E o Sena, cantado em versa e prosa, será como um fio a costurar os Jogos. Resolvido o enrosco da segurança, contudo, outros continuarão a singrar. Há um dano financeiro, porque o rio tem vigorosa atividade comercial, de transportes de mercadorias do interior para Paris, e vice-versa. Além disso, há o debate ambiental — quentíssimo, por óbvio.
As provas de triatlo e a maratona aquática acontecerão no Sena — supostamente limpo. Em 2023, contudo, competições internacionais foram canceladas porque análises bioquímicas revelaram a presença de E. coli em quantidades muito acima do permitido no arroio. A faraônica solução de emergência: um tanque subterrâneo gigante, com volume equivalente ao de vinte piscinas olímpicas, para captar o transbordamento do sistema de esgoto antigo de Paris. O custo do piscinão de socorro: aproximadamente 480 milhões de reais.
Mas como sempre haverá Paris, espera-se que tudo dê certo — ainda que o povo, a mais bonita das criações da revolução de 1789, só poderá acompanhar a festas pela televisão, dado os preços inalcançáveis dos ingressos. Em correndo tudo bem, aí sim será possível declamar o mais conhecido poema francês, ensinado nas escolas, comum em toda antologia: Le Pont Mirabeau, de Guillaume Apollinaire (1880-1918), aqui na tradução de Décio Pignatari: “Escorre sob a ponte o Rio Sena / E em nossos amores / A lembrança me acena / Vinha sempre o prazer depois da pena / Que venha a noite e soe a hora / Os dias se vão não vou embora”.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874