DOHA – Ao vencer a Espanha nos pênaltis, os jogadores da seleção do Marrocos – a boa surpresa da Copa do Mundo – posaram para as fotografias com uma bandeira. Não era o estandarte vermelho com uma estrela verde ao centro. Tampouco o pendão da Tunísia, Arábia Saudita ou Catar, que despontaram nas arquibancadas e nas ruas de Doha como retrato da solidariedade árabe que desfilou pelo primeiro Mundial realizado no Oriente Médio. Os marroquinos tremulavam uma bandeira da Palestina. Ao redor, no meio da torcida, havia faixas pedindo “Palestina Livre”. Os emblemas palestinos apareciam nos ombros das pessoas, em lenços, em camisetas. Houve protesto imediato da comunidade israelense. “Se a Fifa proíbe manifestações políticas, como o uso de braçadeiras em defesa das pessoas LGBTQIA+, se houve desconforto com a postura dos atletas iranianos, que não cantaram o hino do país para denunciar os maus tratos contra as mulheres, por que ser conivente com a exibição da bandeira palestina como manifestação política?”, disse a VEJA Michael Jankelowitz, porta-voz para a imprensa internacional da Agência Judaica, que está em Doha.
O clima de guerra fria – e nem tão fria assim – entre a defesa palestina e seus antagonistas é um dos temas a emoldurar o torneio, a nítida constatação de não se tratar apenas de futebol. Há um caldo geopolítico interessante demais para ser negligenciado. Ele ganhou ainda mais consistência com a presença, em Doha, de 5 000 judeus israelenses (há também 15 000 árabes israelenses). Ressalve-se que Israel e Catar não mantém relações diplomáticas, apenas acordos comerciais. Para a Copa, contudo, deu-se uma exceção, e uma série de voos fretados da companhia cipriota Tusair foram autorizados a decolar do aeroporto David Ben Gurion, de Tel Aviv – ainda que israelenses possam escolher outras rotas. Um influente rabino americano, Marc Schneier, de Nova York, líder de uma fundação destinada a promover as relações entre muçulmanos e judeus, até costurou com as autoridades do Catar a oferta de comida kosher, que obedece às leis judaicas, em alguns hotéis.
Contudo, apesar da distensão, promovida pela Fifa, que gosta de se mostrar ao mundo como uma ONU reforçada, o cotidiano em Doha não é exatamente como fabulou Schneier. O israelense Duby Nevo, de 62 anos, dono de uma pequena empresa de aluguel de motos e tradutor do japonês para o inglês, chegou a Doha vindo de Amã, na Jordânia. Ele contou a VEJA ter vivido uma situação incômoda – embora sem agressividade – nos primeiros dias de sua estada no Catar. ”Estava em um ônibus comum, e comecei a conversar com um senhor ao meu lado”, lembra. “Ele me perguntou de onde eu era, disse que vinha de Israel. O homem, calmamente, se virou para mim e não teve dúvida em afirmar: Ah, o inimigo”. A conversa, segundo Nevo, prosseguiu: “Soube que ele é egípcio, e de nada adiantou dizer que há um acordo de paz entre os dois países”. Situação semelhante viveu o repórter Raz Schechnik, do jornal Yedioth Ahronot, que postou no Twitter as interações com torcedores árabes que se recusaram a falar com ele. “Somos todos humanos”, disse Schechnik a um jovem que se afastara do microfone. “Você não é humano”, respondeu o homem. “Não há nada chamado Israel. Só existe a Palestina, e vocês tiraram a terra deles”. Numa diatribe com outra pessoa, vestida com a camiseta do Marrocos, o jornalista argumentou, numa linha de conversa que tem prevalecido: “Mas vocês assinaram um acordo de paz”. A resposta: “Palestina, Palestina!”.
Os torcedores israelenses, salvo quando se identificam, e por não ostentarem camisetas ou bandeiras, orientados a se comportarem dessa maneira ao embarcar, circulam pelo Catar sem problemas – e, ressalve-se, os episódios de conflito são pontuais, ainda que ganhem amplitude nas redes sociais. A ribalta dos desentendimentos se dá mesmo ao redor dos jornalistas, por levarem crachás e equipamentos que deixam claro de onde são. O ambiente inamistoso revela o fosso entre as decisões tomadas entre governantes, de terno e gravata, e o cotidiano das ruas. Em setembro de 2020, nos gramados da Casa Branca, tendo como avalista Donald Trump, Israel, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein deram as mãos, selando amizade, no que ficou conhecido como Acordos de Abraão. Depois o Marrocos se uniu ao grupo, seguido do Sudão. O interesse americano, e de um grupo de nações árabes conduzidas pela Arábia Saudita, é apartar o Irã e isolá-lo de seus vizinhos. As novas aproximações se juntaram às do Egito e Jordânia, os primeiros a assinar acordos com Israel nos anos 70 e 90, respectivamente.
“A reação à cobertura da Copa do Mundo pela imprensa de Israel mostra como os Acordos de Abraão são limitados, e não abordaram questões centrais com as quais muitos se preocupam”, tuitou Mohammad Magadli, jornalista de televisão árabe-israelense. O repórter de assuntos palestinos do Canal 12, de Tel Aviv, que costuma perambular pela Cisjordânia para obter opiniões de palestinos, e invariavelmente depara com hostilidade, revelou o desconforto, em conversa com o âncora da emissora: “Há muitas tentativas, de muitas pessoas do mundo árabe em Doha, de se oporem a nós, por representarmos a normalização. O desejo do governo de Israel e da maioria dos israelenses se tornou realidade, com a paz estabelecida com quatro países árabes, mas há o povo, e muita gente não gosta de nossa presença aqui”. Magadli, nas redes sociais, sugere um contraponto: “Jornalistas judeus reclamam do tratamento hostil que recebem no Catar. Sugiro que se acompanhe um jornalista árabe em Israel, e não no exterior, por apenas um dia”.
רז שכניק, עוז מועלם
תשמעו, לא רצינו לכתוב את הדברים האלה. תמיד חשבנו שלא אנחנו, העיתונאים, הם הסיפור. בטח לא במפעל הכי גדול של הספורט העולמי לצד האולימפיאדה. אבל אחרי עשרה ימים בדוחא, אי אפשר שלא לחלוק אתכם את מה שעובר עלינו כאן. לא מתכוונים לייפות. אנחנו מרגישים שנואים, עטופי> pic.twitter.com/nMTApXtBWb
— Raz Shechnik (@RazShechnik) November 26, 2022
Na Copa do Mundo, a paz – tão desejada e tão celebrada – é ainda uma quimera, mal sai do papel. Funciona no mundo dos negócios, promove avanços comerciais, mas parece refletir apenas os interesses das elites. “Os árabes, mesmo os de países com quem Israel estabeleceu relações, têm desconfiança, e talvez não se chegue a lugar nenhum”, disse o pesquisador saudita Abdulaziz Alghashian ao The New York Times. O analista americano Giorgio Cafiero, executivo-chefe de uma consultora sobre o Golfo Pérsico sediada em Washington, ecoou essa sensação, em artigo publicado no início da semana. “Claramente, não há muito amor no mundo árabe por Israel”, escreveu. “Do lado árabe, os acordos são evidente imposição de cima para baixo, imposta por governos autoritários e que não foram eleitos, sempre dispostos a ignorar a opinião pública”. Há nuances, e elas precisam ser levadas em consideração, de modo a não tomar o pontual como genérico. Um reputado repórter de Israel ouvido por VEJA em Doha, e que pediu para não ter seu nome revelado, diz haver alguma hipocrisia, multiplicada pela internet. “Para ser honesto, em alguns lugares da França e da Bélgica é muito mais perigoso se identificar como israelense do que em Doha”, diz. “Qual a novidade saber que os árabes não simpatizam com Israel? Se um catari se recusa a conversar com jornalistas israelenses, ele está em seu pleno direito – e não faz sentido mostrar surpresa com esse tipo de reação. Desde que não haja violência, e não houve, está tudo bem, dentro do previsto”.
Ficou evidente, nas três primeiras semanas da competição, que há um sentimento de nacionalismo árabe, o pan-arabismo – ele parecia ter diminuído, em decorrência de conflitos econômicos, de diferentes linhas de governo, mas está vivíssimo. No jogo de abertura, entre Catar e Equador, chefes de estado que até outro dia eram inimigos, viraram amigos de conveniência. O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, foi filmado abraçando o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani. Em junho de 2017, os saudistas lideraram um bloqueio econômico ao Catar, acusado de financiar o terrorismo, levando Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito a também cortarem relações com Doha. A disputa só foi resolvida em 2021. Essa aproximação, associada à desconexão entre as decisões oficiais da diplomacia e os interesses dos cidadãos comuns, sobe o tom. Ele é visível nas bandeiras palestinas que circulam pelos estádios, nas braçadeiras palestinas e até nos lenços de algodão em preto e branco, os kaffiyehs, com a bandeira palestina. Como as outras nações árabes e islâmicas foram ficando no meio do caminho, o Marrocos se tornou porta-estandarte da causa palestina – e pelo menos até sábado, no jogos das quartas de final contra Portugal, ela estará presente. O desarranjo político, no avesso do que a Fifa propaga, é como um camelo na sala que ninguém consegue ou nem mesmo tem vontade de tirar. Mas há esperança, porque o esporte, apesar de tudo, tem o dom civilizatório.