Uma alteração importante passou praticamente despercebida na Emenda Constitucional 109, mais conhecida como PEC Emergencial, promulgada no dia 15 de março. A urgente necessidade do auxílio emergencial em meio ao recrudescimento da pandemia ocultou uma modificação significativa no pagamento dos precatórios que se enquadram no regime especial. Na prática, o prazo de quitação foi estendido por mais cinco anos, de 2024 para 2029. No ano passado, os estados e municípios brasileiros enquadrados neste regime – ou seja, a maioria deles – gastaram 104 bilhões de reais nestes pagamentos.
Esta Emenda à Constituição representa um alívio aos entes federativos que possuem grandes dívidas de precatórios. Dos 104 bilhões de reais pagos no ano passado, por exemplo, quase metade corresponde a dívidas do estado e do município de São Paulo. Este alívio pode não vigorar, porém, por muito tempo. Isso porque a OAB Nacional está preparando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que será apresentada nas próximas duas semanas para questionar a mudança. A expectativa é de vitória tendo em vista que duas ações semelhantes foram declaradas inconstitucionais (emenda 62, de 2009, e emenda 30, de 2000).
Os precatórios são títulos de dívidas devidas pelo Estado após condenações judiciais, a uma pessoa ou empresa que sofreu um dano. No caso dos precatórios gerados por uma pessoa jurídica, por exemplo, eles costumam estar relacionados a uma questão tributária, ou seja, a empresa pagou um imposto a mais do que deveria, ou a um inadimplemento, na qual prestou um serviço ao estado que não foi remunerado adequadamente.
“Toda vez que o Supremo foi instado a falar sobre a constitucionalidade do pagamento de precatórios, ele a declarou inconstitucional”, diz Eduardo Gouvêa, presidente da Comissão Especial de Precatórios da OAB Nacional. “É bastante óbvio porque se refere a direito adquirido”, diz ele. Entre os princípios violados estão o direito à propriedade, duração razoável do processo e separação dos poderes.
Entenda
Divididos em dois regimes de pagamento, os precatórios podem ser da modalidade geral ou ordinária e o especial. A União, três estados (Espírito Santo, Alagoas e Pará, que entrará neste ano) e cerca de 1,1 mil municípios pertencem ao regime geral, ou seja: o pagamento entra no orçamento do ente federativo e é pago no ano seguinte. No ano passado, o governo federal gastou 44 bilhões de reais em precatórios, valor equivalente a reedição do auxílio emergencial — e que pesa com o governo que sofre com o déficit fiscal.
Já o regime especial abrange todos os outros entes federativos, ou seja, 24 estados brasileiros e 80% dos municípios. Neste regime, as dívidas já foram postergadas e esta modalidade que é contemplada na PEC Emergencial. Após a sua promulgação, a Constituição Federal passou a estabelecer em seu artigo 101 que os “Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, em 25 de março de 2015, se encontravam em mora no pagamento de seus precatórios quitarão, até 31 de dezembro de 2029, seus débitos vencidos”. Antes, a carta magna estabelecia que a quitação deveria ocorrer até 2024.
Além de agradar os estados e municípios do regime especial, a extensão do pagamento por cinco anos é comemorada pelo mercado secundário. Afinal, o lucro de quem ganha com esta transação vem justamente da diferença entre o valor que o credor tem a receber daqui a muitos anos e o valor pelo qual está disposto a vender hoje. Na prática, este mercado se resume no ditado “mais vale um passarinho na mão, do que dois voando”.
“Há um movimento constante de postergação dessa data limite e o reflexo disso no mercado de precatórios com certeza vai ser de crescimento de demanda”, diz Vinicius Attilio, CEO da Valor Precatório, unidade de negócios da Balko. “Mais pessoas vão se sentir frustradas com a Justiça e com o estado e vão recorrer a compradores de precatórios para conseguirem o recebimento. Mesmo que o valor seja menor, poderá usufruir dele mais cedo”, diz ele.
Em 2020, a Valor Precatórios comprou 60 milhões de reais em precatórios e para 2021 tem a meta de adquirir 100 milhões de reais. A unidade de negócios começou a operar no final de 2019 e, no final do ano passado, cresceu mensalmente 30% mais que no início da operação. O objetivo é continuar se expandindo principalmente por meio das vendas destes produtos.
Outra mudança vinda com a PEC Emergencial é a revogação do parágrafo 4º que constava no artigo 101 da Constituição. Ele estabelecia que a “União, diretamente, ou por intermédio das instituições financeiras oficiais sob seu controle”, devia, obrigatoriamente, oferecer aos estados e aos municípios linha de crédito especial para o pagamento de precatórios no regime especial “no prazo de até seis meses contados da entrada em vigor do regime especial a que se refere este artigo”.
Na prática, isso significava que os estados e municípios podiam exigir que a União colocasse a disposição a referida linha de crédito para pagamento de precatórios, sendo possível utilizar a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil ou o BNDES. De acordo com Eduardo Gouvêa, este crédito foi pouco requerido por estados e municípios e 20 bilhões de reais em linha de crédito divididos em 4 anos, ou seja, 5 bilhões de reais por ano, seriam suficientes para esta demanda, o que corresponde a 10% dos precatórios pagos anualmente pela União.
Além disso, estados e municípios que pudessem ter garantia da União para tomar empréstimos, inclusive junto aos bancos privados, dariam credibilidade aos títulos dos precatórios em regime especial. “A União ainda goza de prestígio junto ao mundo financeiro e um empréstimo com seu aval consegue ser feito a taxas baixíssimas”, diz ele. “A união se beneficia podendo cobrar contrapartidas, por exemplo retendo parte dos recursos ao município devedor”, diz ele.
A OAB Nacional também está preparando uma tese para impedir a mudança, na qual questiona que o Congresso não poderia revogar uma linha de crédito cujo prazo de liberação já estava esgotado, o que teria ocorrido em junho de 2018. Diferentemente da outra ADI, porém, este tipo de questionamento será feito pela primeira vez e ainda não possui precedentes ou jurisprudência.
Reformas necessárias
O volume atual de precatórios federais mais que dobrou nos últimos 10 anos. Para melhorar esses sistemas, portanto, as reformas tributárias e administrativas se fazem urgentes, porque elas tornarão a máquina pública mais eficiente. Além de desonerar os cofres públicos, permitem uma otimização do judiciário, das fazendas públicas, das procuradorias.
Em dezembro do ano passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou a indústria dos precatórios: “O Brasil será destruído por uma indústria de precatórios predatória”, disse ele. O que predomina no sistema brasileiro, porém, é uma indústria de descumprimento da lei, no qual os políticos de hoje fingem solucionar os problemas, mas na verdade só os empurram para os administradores de amanhã. Não adianta tapar o sol com a peneira porque um dia as contas vão chegar. Nesta protelação sem fim, quem perde é a sociedade brasileira.
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