Na noite de 11 de setembro, faltando dois minutos para o fim do prazo estipulado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1.847/24, que estabelece uma transição de três anos para o fim da desoneração da folha de pagamentos de dezessete setores da economia. A medida reintroduzirá, de forma gradual, uma carga tributária de 20% sobre a folha — alterando o cenário para muitas empresas que se beneficiavam de alíquotas reduzidas desde 2011. Embora seja um passo significativo, trata-se de uma exceção em um país conhecido pela generosa concessão de isenções fiscais, que drenam bilhões de reais dos cofres públicos.
Nos últimos vinte anos, o Brasil expandiu suas renúncias fiscais a ponto de elas representarem 4,8% do produto interno bruto em 2023, o equivalente a 519 bilhões de reais — três vezes o valor gasto com o Bolsa Família. Historicamente favorecidos, o setor automotivo, a Zona Franca de Manaus e o Simples Nacional continuam a desfrutar de isenções, mesmo em meio a tentativas de reforma tributária. Enquanto a reoneração da folha de dezessete setores sinaliza um movimento para equilibrar as contas públicas, as isenções concedidas a outros grupos permanecem intactas, levantando questionamentos sobre a eficácia e a equidade dessas medidas fiscais.
“Essas concessões de benefícios em geral têm como justificativas gerar empregos no setor agraciado. O problema é que essa arrecadação é compensada tributando mais os outros setores ou se transformando em dívida pública”, afirma o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e especialista em contas públicas. “Nos dois casos, é possível afirmar que haverá destruição de empregos — seja porque a taxa de juros sobe em decorrência do aumento da dívida pública, desestimulando o investimento e o emprego, seja porque os setores que sofrem com uma tributação maior acabam empregando menos.”
Em 2003, as renúncias fiscais representavam 2% do PIB, mas esse percentual cresceu de forma contínua nos anos seguintes, até o patamar atual de 4,8%. Com grande influência política, a Zona Franca de Manaus e o setor automotivo são alguns dos principais beneficiados — enquanto o Brasil enfrenta dificuldades para realizar uma reforma tributária que dê conta dessas distorções históricas.
A Zona Franca de Manaus, junto de outras áreas de livre comércio, por exemplo, representa 9,1% de todas as isenções concedidas durante o período, um percentual três vezes maior que o concedido aos dezessete setores que agora terão a vantagem da desoneração retirada gradualmente. Já o Perse, programa criado para ajudar o setor de eventos a se recuperar das perdas causadas pela pandemia da covid-19, hoje representa 2% do total de subsídios — superando até mesmo o programa Minha Casa, Minha Vida. Embora seu propósito original tenha sido temporário, a isenção para o setor de eventos permanece em vigor, levantando questionamentos sobre a dificuldade de encerrar políticas que já não são mais justificáveis.
O debate sobre a eficácia dessas medidas é antigo e recorrente. “As evidências para o Brasil não são favoráveis. Avaliações da política de desoneração da folha de salários introduzida em 2011 indicam que seus efeitos sobre a geração de emprego foram modestos e que o custo de cada posto de trabalho criado foi bastante elevado”, analisa Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. “Embora a ideia de desonerar a folha tenha méritos, sua concepção e sua implementação precisam ser feitas com muito cuidado, para não comprometer as contas públicas.”
O Simples Nacional, o principal regime tributário para micro e pequenas empresas, concentra quase um quarto de todas as renúncias fiscais. Segundo Décio Lima, presidente do Sebrae, o Simples Nacional é o principal aliado das empresas ao evitar a informalidade e garantir a sobrevivência de milhões de empreendimentos. “As micro e pequenas empresas acumulam conquistas compatíveis com sua contribuição para a economia do país, respondendo por seis em cada dez empregos no Brasil e por aproximadamente 30% do PIB”, afirma Lima. Ele ainda argumenta que o Simples Nacional é essencial para manter essas empresas operando e evitar que muitas caiam na informalidade.
Embora o Simples Nacional seja amplamente defendido como uma política essencial para a sobrevivência de empresas de pequeno porte, há críticas contundentes sobre sua eficácia. Um relatório do Banco Mundial, encomendado em 2015 pelo então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, apontou que o programa, ao reduzir significativamente a carga tributária, acaba desestimulando o crescimento das empresas. O relatório sugere que muitos negócios preferem permanecer pequenos para continuar se beneficiando das isenções — o que limita a expansão, a competitividade e a inovação.
Com um endividamento crescente e um déficit fiscal que ainda é uma preocupação central do governo, as renúncias fiscais têm se tornado um ponto crítico para o equilíbrio das contas públicas. A reoneração de dezessete setores marca um movimento tímido em direção à responsabilidade fiscal, mas deixa de fora muitos dos maiores beneficiados, cujas isenções continuam a exercer pressão sobre a economia.
“As renúncias são formas de realizar políticas públicas por meio do sistema tributário. Os grandes problemas são a (falta de) transparência e a (baixa) efetividade desses recursos”, afirma Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado Federal que monitora as contas públicas e analisa a sustentabilidade fiscal do país. Ela reforça que a falta de clareza nas políticas de renúncia fiscal contribui para perpetuar ineficiências do sistema tributário. “Muitas vezes, esses gastos tributários são pouco avaliados, o que levanta questionamentos sobre sua eficiência e qualidade.”
No setor têxtil, um dos principais afetados pela reoneração da folha, o diretor-superintendente da Abit, Fernando Pimentel, avalia que, embora o fim gradual da desoneração não tenha sido o resultado esperado, a medida traz alívio por acabar com a incerteza que rondava o setor nos últimos anos. “Agora precisamos nos debruçar sobre uma agenda que cuide de uma redução estrutural do custo do emprego formal no país e reduza os 40 milhões de informais que trabalham na nossa economia”, afirma Pimentel.
Ao passo que o Brasil avança com a reoneração de dezessete setores, os grandes subsídios que historicamente pesam sobre as contas públicas permanecem intactos. Setores poderosos continuam a usufruir de benefícios que, na prática, trazem poucos resultados efetivos para a economia. A Zona Franca de Manaus, existente desde 1967, e o setor automotivo seguem como exemplos de privilégios garantidos por lobbies, enquanto reformas profundas são adiadas.
Diante da pressão crescente sobre as contas públicas, fica cada vez mais evidente que a revisão das renúncias e subsídios é uma tarefa inadiável. A reoneração é um primeiro passo, mas o verdadeiro desafio está em enfrentar os setores mais influentes, cujos privilégios continuam a sobrecarregar a economia brasileira. “Essas concessões acabam beneficiando setores específicos em detrimento do equilíbrio fiscal. Muitas vezes, a justificativa de geração de empregos não se sustenta, e o custo recai sobre toda a sociedade, seja por meio de endividamento público, seja por tributação mais elevada sobre outros setores”, afirma Mendes, do Insper. Sem um movimento firme para mudar isso, o Brasil permanecerá sendo “o país das isenções” — um lugar onde apenas alguns se beneficiam, mas todos pagam a conta.
Publicado em VEJA, setembro de 2024, edição VEJA Negócios nº 6