Luiz Cezar Fernandes já foi um dos homens mais ricos do Brasil e esteve ao lado de Jorge Paulo Lemann no início da corretora Garantia, antes de ela se tornar um banco de investimentos. Foi lá onde conheceu os atuais sócios de Lemann no 3G Capital, Marcel Telles e Beto Sicupira, e deu a sua contribuição nos primeiros passos para a construção do atual império de empresas de consumo. O empresário falou a VEJA sobre o rombo contábil bilionário no balanço das Lojas Americanas.
Para ele, que participou da compra da varejista no início da década de 80, mas que depois se desentendeu com Sicupira ao querer vender a companhia, os prejuízos recentes da Americanas parecem advir de “uma maneira de aumentar dividendo” e de criar “lucro para pagar bônus aos executivos”. Ele afirmou ainda que, provavelmente, as práticas começaram “há muito tempo” e o grupo se preparou para fazer a denúncia do rombo bilionário, inclusive deixando cargos no Conselho que poderiam lhes comprometer juridicamente. Nessa conversa, ele conta sobre como a cultura do Garantia era de uma busca agressiva de resultados, mas sem maquiagem de balanços, e avalia o que pode ter dado de errado para a Americanas ter se envolvido num dos maiores escândalos corporativos da história recente do capitalismo brasileiro.
Qual é a opinião do sr. sobre o déficit de 20 bilhões de reais no balanço da Americanas?
O que foi feito foi uma maneira de criar lucro artificial para aumentar dividendo. Inclusive, foram ao extremo deixando um atraso no pagamento dos fornecedores. O fornecedor vendeu por 90 dias, eles atrasavam e pagavam com 120 dias. Mas isso não foi suficiente, então resolveu esconder o passivo dos bancos. Acho que chegou em um ponto que não dava mais, chamaram o (Sergio) Rial e falaram: “temos um problema, não estamos mais conseguindo alavancar, você vem e fala que tem isso aqui e aqui”. Porque é impossível que o Rial em uma semana descubra um troço que nenhum analista tenha pegado nesses 50 anos, mil analistas e ninguém pegou. Ele é gênio, mas nem tanto. Aquilo foi combinado. “Você diz que descobriu, aí a gente parte para resolver, então vamos dar o prejuízo para o Family Office e para os bancos”. Acho que isso começou há muito tempo.
Isso pode estar relacionado aos resultados de curto prazo atrelados ao cálculo de pagamento de bônus?
Lógico que tem. Porque você paga o bônus de acordo com o lucro. Mas, eles criaram o lucro para pagar dividendo e o monstro de bônus para os executivos, desproporcional ao lucro real que a empresa estava tendo. Inflavam o lucro, pagavam bônus para os executivos, mas quem mandava na loja? Ninguém? Era o Beto Sicupira que mandava. Eles chegavam na reunião e ninguém podia discordar dele. A gente tinha consciência que era assim. Todo ano diziam: “ah, vamos aumentar aqui e distribuir dividendos”. E eles vieram aproveitando que já estava batendo no limite para vender uma posição grande [das ações da empresa]. Sabiam que o problema iria estourar em algum momento e que as ações não ficariam naquele preço. O preço médio de venda hoje tem uma enorme queda. E todo mundo saiu do conselho de administração. O Jorge [Paulo Lemann] e o Marcel [Telles] saíram há anos, mas o Beto [Sicupira] deixou o conselho há um ano, com a desculpa que o mercado não aceitou. Na prática, ele era o controlador, que mandava e pronto, mas aparentemente passou a ser acionista de referência. Ele mandava no conselho todos os dias, mas tecnicamente não era controlador. Juridicamente, ele tem uma posição muito tranquila, se tiver um processo do Ministério Público e da CVM (Comissão de Valores Mobiliários). Por isso, acho que já estava no planejamento do Rial fazer a denúncia.
Essa pode ser uma prática comum nas empresas do grupo 3G?
Eu acho que sim. Nós compramos as Lojas Americanas por 27 milhões de dólares e no primeiro ano recebemos 27 milhões de dólares de dividendos. Na época, eu achei normal, mas olhando hoje é capaz que tenha começado lá os problemas. Estou presumindo. Porque o Beto [Sicupira] estava sentado na presidência, na loja, e queria mostrar lucro. Você vai na bolsa e compra mole o controle de uma empresa por 27 milhões de dólares e no primeiro ano paga 27 milhões em dividendos? Por que a empresa não pagou antes, então? Deu em um ano um lucro desse tamanho, realmente? Teve alguma mágica. Depois, a segunda mágica foi fazer a São Carlos [Empreendimentos], e depois a próxima mágica foi juntar com a B2W. Ou seja, houve sempre alguma ginástica para esconder do mercado o que está acontecendo [no balanço]. A última operação com a B2W foi uma discussão enorme, porque ninguém entendeu aquela fusão. Cada ano teve um jeitinho e acharam que agora iam descobrir. Então, não tem São Carlos, não tem separar da Walmart, como fizeram meio a meio com a Walmart no Brasil, e depois vendeu metade para Walmart e saiu fora. Todos esses eventos grandes que aconteciam de quando em quando iludiram um pouco o mercado.
Como era a cultura do resultado a qualquer preço criada no Garantia, e que acabou sendo uma marca da gestão das empresas ligadas ao 3G?
Nós tínhamos o resultado a qualquer preço, mas operando contra o mercado. Não inventando lucro. Isso era proibido. Isso talvez tenha começado com Lojas Americanas, razão pela qual nunca quiseram vender a empresa. Nós compramos três ações para nos defendermos da política do Delfim Netto (ex-ministro da Fazenda), que tinha tabelado juros, correção monetária, tudo em 15%. Sabíamos que a inflação ia ser maior, então decidimos fazer a defesa comprando ações. Compramos primeiro a Lobras, que era uma concorrente da Lojas Americanas, que vendemos para o Goldfarb, cuja família hoje é dona das Lojas Marisa. Com esse dinheiro, compramos Lojas Americanas, Alpargatas e Brahma. Então, vendemos Brahma e Alpargatas, e nunca quisemos vender Lojas Americanas. Uma das dificuldades que eu tive com o Beto [Sicupira] era porque eu queria vender, porque o nosso negócio não era ter ações em empresa, mas ter capital na mão. Começou essa discussão, eu desisti e fui embora. Um dos motivos da minha saída foi realmente a não venda da Lojas Americanas. Ela pertencia integralmente ao Garantia Banco de Investimentos, e eu tinha 10% do Garantia.
Essas empresas podem ter desenvolvido um relacionamento inadequado com as empresas de auditoria?
Acho que não. O que acontece com uma empresa de auditoria é um vexame. Por exemplo, uma Lojas Americanas contratou uma PwC. Então, a auditoria manda todos os estagiários que estão entrando hoje para lá e fala o passo a passo que eles têm de cumprir. Os caras que vão fazer a auditoria, na prática, na ponta, são os estagiários, e fazem por amostragem. Dão para eles as amostras que ele têm de ver. Os caras não têm experiência e engolem qualquer coisa. Depois, o chefe vem e assina. A sócia responsável pelas Lojas Americanas também era responsável pelo IRB, que foi um grande problema. Em um caso idêntico a esse, que foi a Enron, nos Estados Unidos, a empresa de auditoria quebrou.
E com a CVM e as entidades fiscalizadoras e reguladoras?
Eu não acredito. A CVM foi criada para regulamentar e fomentar o mercado e hoje ela tem uma ação policial. Ou seja, precisa que aconteça algo para reagir. Enquanto não acontece nada, ela vai tocando. Só quando estoura as crises dentro das empresas que ela atua. A B3 também é responsável, porque ela tem um acordo com a CVM de fiscalizar as empresas de capital aberto, e também não fez. Então, a bolsa e a CVM poderiam ter visto isso, porque também olham os balanços e não viram. Não é só a PwC que tem responsabilidade.
Mais empresas do grupo podem ter problemas prestes a estourar?
É possível que sim, mas não tenho certeza. Tem aquele velho ditado “quem faz um cesto faz um cento”.
Questionamento
Sindicatos e associações de contadores e peritos judiciais, entre as quais a Sescon-SP, Aescon-SP e a APEJESP questionam as falas de Luiz Cezar Fernandes, conforme nota a seguir.
O sr. Luiz Cezar Fernandes, ex-sócio do Banco Garantia, traz uma série de comentários desrespeitosos à classe dos contadores.
Sendo assim, nós não poderíamos deixar de refutar tais considerações que prejudicam toda uma classe de profissionais dedicada à transparência da informação econômico-financeira de Entidades Públicas e Privadas, com o objetivo de proteger a sociedade.
Não cabe a afirmação “o que acontece com uma empresa de auditoria é um vexame”. A situação das Americanas é grave e todo cuidado deve ser tomado quanto a declarações sem fundamentação, ou sem que a classe por meio de seu Conselho Federal se manifeste.
As normas contábeis são aprovadas por um colegiado de profissionais altamente qualificados, as normas de auditoria também passam pelo mesmo rigoroso processo regulatório. Tudo isso é supervisionado pelos Conselho Federal de Contabilidade e Conselhos Regionais, via suas equipes de fiscalização, pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, Banco Central do Brasil-BACEN e diversos órgãos reguladores da profissão.
As equipes de auditoria possuem profissionais desde trainees a sócios, cada qual com sua capacidade, treinamento e tarefas a executar e documentar. De todos esses profissionais são exigidos treinamentos específicos, certificação homologada pela CVM, pelo CFC e comprovação de educação continuada.
Associação dos Peritos Judiciais do Estado de São Paulo – APEJESP, Sindicato das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Informações e Pesquisas do Estado de São Paulo – Sescon-SP; Associaçâo das Empresas de Serviços Contábeis no Estado de São Paulo – Aescon-SP