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Memória: Por Tutatis! Basta!

O francês Albert Uderzo e o argentino Quino, criadores de Asterix e Mafalda, deram adeus no ano em que a realidade se impôs dramaticamente à ficção

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h38 - Publicado em 24 dez 2020, 06h00
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  • CRIADORES E CRIATURAS - A França vista a partir do orgulho do gaulês bravinho e o pessimismo portenho colado a uma família de classe média da menina esperta e lúcida: lições de vida -
    CRIADORES E CRIATURAS - A França vista a partir do orgulho do gaulês bravinho e o pessimismo portenho colado a uma família de classe média da menina esperta e lúcida: lições de vida – (Chesnot/Getty Images; Ricardo Ceppi/Getty Images)

    O que Asterix — por tutatis! — diria para Mafalda em 2020, o ano em que a realidade deu de 10 na ficção? “Esses romanos são uns neuróticos!”, talvez se referindo a um outro império, comandado por um César americano em seu derradeiro ano no poder. E o que a menina argentina gritaria para o mundo inteiro ouvir, muito além das fronteiras da Gália? “Será que Deus patenteou essa ideia do manicômio redondo?” Ou então, de modo evidentemente sucinto, porque não há mais tempo a perder, ela esbravejaria, de boca aberta: “Basta!”. Calhou deste esquisito e triste ano da pandemia, em quase tudo irreal, dar adeus a um dos pais de Asterix e ao criador da Mafalda. O desenhista Albert Uderzo, de 92 anos, morreu em março, na França. Quino, aos 88 anos, nascido Joaquín Salvador Lavado Tejón, se foi em setembro, na Argentina de Maradona. Um e outro, ambos gênios incontestáveis do desenho, ajudaram a pavimentar o caminho, de meados do século XX até os dias de hoje, pelas dores da civilização — ou, para ser mais exato, pelo planeta que, depois da II Guerra Mundial, passando pelos revolucionários anos 1960, até os explosivos anos 1970, balançou, balançou, mas não caiu. Até que, sublinhe-se, a pandemia do novo coronavírus voltou a bagunçar as ideias estabelecidas, deixando quase tudo um tanto fora do lugar. E aqui, ressalve-se, há um pouco do histrionismo mercurial de Asterix e do pessimismo lúcido de Mafalda. Nada que desautorize ironia e sobretudo humor, porque assim é que se toca em frente. Cabe pedir socorro à garota portenha, como tanta gente já fez: “Afinal, que história é essa? A gente vai tocando a vida, ou é a vida que vai tocando a gente?”.

    Asterix virou um símbolo incontornável da cultura popular da França e sátira de seu orgulho nacional, inquebrantável. Os livros da dupla Uderzo e René Goscinny (1926-1977) venderam 370 milhões de unidades, deram origem a quinze filmes e a um concorrido parque temático nos arredores de Paris. Uderzo, tímido vocacional, que nascera com doze dedos (uma cirurgia corrigiria a malformação), gostava de dizer que não era reconhecido nas ruas, e se vangloriava dessa situação: “Personagens podem se tornar mitos, mas nós, seus idealizadores, não”. Mafalda, seu irmãozinho, o Guille, Felipe, Manolito, Susanita, Miguelito e Libertad são uma lição de humanidade. Foram 1 928 tiras e um par de livros com coletâneas, lançados em mais de trinta países. Sua relevância pode ser medida por uma reação do escritor Julio Cortázar (1914-1984). Certa feita, perguntaram a ele o que achava da figura imaginada por Quino. A resposta: “O que me importa é o que ela acha de mim”. Asterix e Mafalda, Uderzo e Quino serão sempre invocados para ajudar a tocar o barco.

    Se estiver difícil, como esteve no ano que se encerra, uma saída é tomar a poção mágica de resiliência e otimismo do druida Panoramix — ou então, e que Mafalda não saiba, uma sopa quentinha. É o que nos resta, como lembrança e homenagem aos milhares de brasileiros que morreram em 2020 em decorrência da Covid-19.

    Publicado em VEJA de 30 de dezembro de 2020, edição nº 2719

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