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Exposição em São Paulo ilumina a obra do fotojornalista Evandro Teixeira

Mostra destaca um capítulo fascinante de sua carreira, ao registrar o corpo morto de Pablo Neruda, em 1973, no Chile

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h15 - Publicado em 18 mar 2023, 08h00
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  • As folhas de contato são como relíquias de antigas civilizações da fotografia — nelas se imprimiam em formato pequeno, de tamanho menor do que uma caixa de fósforo, a sequência enfileirada de cliques feitos com a câmera analógica. Serviam como ferramenta de edição. Uma infinita folha de contato do trabalho do baiano Evandro Teixeira, de 87 anos, revelaria a história dos últimos sessenta anos do Brasil — e, em doses generosas, a de outros países. A exposição Evandro Teixeira, Chile 1973, a partir de 21 de março no IMS de São Paulo, é um recorte emocionante da trajetória de um profissional cuja modéstia e senso de humor só perdem para seu faro por notícia. “Sou um homem manejando uma câmera”, diz. “Quando bem operada, é um fósforo aceso na escuridão. Ilumina fatos nem sempre muito compreensíveis. Oferece lampejos, revela dores do impasse do mundo. E desperta nos homens o desejo de destruir esse impasse.”

    Evandro, autor das mais icônicas fotografias das manifestações contra a ditadura brasileira em 1968 e da pancadaria militar, foi enviado pelo extinto Jornal do Brasil para Santiago, logo depois do golpe de Pinochet naquele outro 11 de setembro. Esteve nas ruas ensanguentadas, entrou no infame Estádio Nacional, registrou o Palácio de La Moneda chamuscado pelo fogo, rompeu o severo toque de recolher. Iluminou a escuridão. E, ao misturar a busca incansável com a esperteza de menino, fez o que ninguém conseguiu: registrou o corpo do poeta Pablo Neruda logo depois de sua morte, na clínica Santa María, em 23 de setembro de 1973.

    DRAMA - O féretro a caminho do enterro: até hoje, a suspeita de um assassinato
    DRAMA - O féretro a caminho do enterro: até hoje, a suspeita de um assassinato (Evandro Teixeira/.)

    No restaurante do hotel onde estava hospedado, ele conheceu a mulher, brasileira, de um oficial chileno. Ela lhe informou do paradeiro de Neruda, que já não estaria em casa, mas hospitalizado. Evandro e o repórter que o acompanhava, Paulo César de Araújo, seguiram a pista. Viram o corpo do escritor deixar o quarto e depois ser encostado numa maca ao lado da capela. Para Matilde Urrutia, a viúva, Evandro se apresentou como amigo de Jorge Amado, companheiro de letras e ideologia do chileno. “De repente, abriram uma porta lateral”, lembra. “Olhei, era Neruda e Matilde, e só havia eu de fotógrafo. Tirei a Leica, que sempre deixo preparada para fotos a dois metros, e cliquei.” Fez uma dezena de chapas, clássicos das veias abertas da América Latina.

    As imagens de Neruda ganharam recentemente especial notoriedade. Uma investigação forense iniciada há uma década revelou a presença no corpo exumado de Neruda de uma bactéria, Clostridium botulinum, microrganismo letal que pode estar em alimentos, mas que já foi usada como arma biológica contra seres humanos. As autoridades da ditadura sempre negaram a possibilidade do envenenamento do Prêmio Nobel e desde 1973 afirmam que ele morrera esquálido, em decorrência de câncer na próstata, que de fato tinha, em estado de caquexia. As estampas de Evandro mostram o avesso, com o poeta ainda rechonchudo, na contramão da versão oficial, a caminho da desconstrução definitiva da mentira.

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    INFÂMIA - Estádio Nacional: a vigilância armada da ditadura
    INFÂMIA - Estádio Nacional: a vigilância armada da ditadura (Evandro Teixeira/.)

    Evandro, a seu feitio, fez das lentes instrumento de manifesto do cotidiano. “Ele tem uma fotografia de resistência, humanística, na linha de frente”, diz Sergio Burgi, curador da mostra. São imagens de especial apreço por câmeras pequenas, como a Leica, agora em versão digital. Muito raramente usou teleobjetivas, que o afastariam demais das cenas, como ensinou o francês Robert Capa: “Se suas fotos não são boas o suficiente, então você não está perto o suficiente”.

    As fotos de Evandro no Chile, feitas bem de perto, são mais perenes até do que a figura de Neruda, recentemente “cancelado” por sua postura machista e misógina, revelada sem meias-palavras no livro de memórias Confesso que Vivi, lançado postumamente em 1974. Não diminui sua obra, mas a põe em outra perspectiva. Os registros de Evandro, contudo, ganharam relevo com o tempo. Suas fotos, o preto e branco tingido na memória da humanidade, nos paralelepípedos de metrópoles sitiadas, no chão de terra do sertão da Bahia, lá por onde passou, poderiam ter como legenda versos de outro poeta, Carlos Drummond de Andrade, que dedicou alguns de seus escritos ao próprio Evandro: “A pessoa, o lugar, o objeto estão expostos e escondidos ao mesmo tempo, sob a luz, e dois olhos não são bastantes para captar o que se oculta no rápido florir de um gesto”. Gestos como o de Matilde debruçada no caixão de Neruda em uma primavera cinza.

    Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833

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