Com a aposentadoria do ministro Celso de Mello o Supremo Tribunal Federal perde o integrante que melhor representa as virtudes da instituição e a democracia brasileira se desfalca de um de seus mais resolutos defensores. O professor da USP Rogério Arantes, em seminário do site jurídico Jota, definiu, pelo avesso, o conjunto de qualidades que caracterizam sua atuação: “O ministro Celso de Mello não se propõe à articulação política, não atravessa a Praça dos Três Poderes, não se ocupa da defesa corporativa da classe dos juízes, não busca a mídia, não parece ser de intriga, não é da vanguarda iluminista e não tem obsessão pela divergência ou pelo voto minoritário”. Não é difícil adivinhar: entre os atuais integrantes da Corte há sempre um em que cabe pelo menos um dos vícios arrolados.
Celso de Mello rejeitou desde sempre a promiscuidade brasiliense. As noitadas, preferiu gastá-las, até altas horas em seu gabinete, entre os livros e os processos. Em entrevista a este colunista, em 2018, disse ter aprendido ao tempo de estudante na Faculdade de Direito da USP (onde se formou em 1969) que um juiz não deve ir a festas. Se o convite for irrecusável, que faça uma exceção, mas observando a lei dos três “S”: saudar, sorrir e sumir. Na mesma entrevista, respondeu com alarme a uma pergunta sobre as brigas, então no auge, entre membros da Corte: “Nunca vi isso. Sempre soubemos que havia grupos em outros tribunais, maiores, mas não na pequena comunidade que é o STF”.
Nos últimos anos muitos ministros aposentaram-se antes do tempo — Francisco Rezek, Ellen Gracie, Nelson Jobim. Celso de Mello foi ficando, e é fácil imaginar por quê: ele ama a instituição. É o ministro que mais pesquisa a sua história e mais cita as porfias passadas. Nomeado pelo presidente Sarney, em maio de 1989, foi o terceiro a ingressar no STF (depois de Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence) sob a Constituição de 1988. Naqueles anos a maioria dos ministros vinha da ditadura e tendia, segundo o professor do Insper Diego Werneck, outro dos palestrantes no seminário do site Jota, “a ler a Constituição com olhos antigos, modulando para menos muitas de suas inovações”. Nesse ambiente Celso teria sido um arauto dos novos tempos, a exigir um papel ampliado ao STF e “à própria ideia de Constituição”.
“Celso de Mello seria o primeiro e o último a exercer o papel ao feitio que lhe emprestou”
Se começou bem como ministro, Celso de Mello terminou melhor. Com seus 31 anos e um mês de STF, bateu um recorde, no período republicano. Antes dele a marca pertencia a Hermínio do Espírito Santo (29 anos, onze meses e 24 dias), seguido de André Cavalcanti (29 anos e oito meses), segundo pequeno livro do próprio Celso sobre o tribunal. Com a aposentadoria de Sepúlveda Pertence, em agosto de 2007, ele virou o decano, e nos treze anos e dois meses seguintes conferiu substância a um posto antes “apenas simbólico e protocolar”, segundo escreveu, num artigo recente, Felipe Recondo, coautor do livro Os Onze, sobre o STF.
Como decano, entre outros momentos, destacam-se seus reptos aos arroubos intimidatórios dos generais bolsonarianos. Quando o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, manifestou seu “repúdio à impunidade”, na véspera do julgamento que poderia beneficiar o ex-presidente Lula, respondeu com uma condenação a “práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir”. E quando o general Heleno alertou sobre as “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” que poderiam advir da eventual apreensão do celular de Bolsonaro, no curso das denúncias do juiz Sergio Moro, serviu-se da típica alta retórica para duplicar a dureza na resposta: “Ninguém, absolutamente ninguém, não importando que se trate de cidadão ou agente público, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar a autoridade do ordenamento jurídico do Estado”.
Numa quadra em que nos faltam estadistas na política, Celso de Mello, quando necessário, preencheu a lacuna. Os próximos decanos serão Marco Aurélio, até julho, e em seguida Gilmar Mendes. Nenhum dos dois goza da mesma unanimidade entre os colegas, nem do mesmo espírito superior às idiossincrasias, aos partidarismos e às quizilas. Felipe Recondo também não vê exemplo à altura no passado do STF, o que o leva a supor que Celso de Mello seria o primeiro e o último a exercer o decanato ao nobre feitio que lhe emprestou.
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Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708