Winston Churchill ensinou que quem tenta aplacar a fome do crocodilo pode até ser devorado por último, mas não escapa de ser devorado. O filósofo Karl Popper ensinou que a tolerância ilimitada para com os intolerantes leva à destruição da tolerância.
O Judiciário entendeu, afinal. Percebeu que Bolsonaro segue à risca o roteiro que levou um bando de baderneiros a invadir o Capitólio. E que o “Capitólio”, no Brasil, serão o TSE e o STF. E que os militares brasileiros não têm com a Constituição o mesmo compromisso que têm seus pares americanos. E que, até hoje, mais da metade dos eleitores de Trump acredita que as eleições foram roubadas.
Os juízes decidiram agir. E sua ação é de tirar o fôlego. O Tribunal Superior Eleitoral abriu, por unanimidade, inquérito contra Bolsonaro pelas fake news contra as urnas eletrônicas. E enviou ao STF, em decisão também unânime, notícia-crime contra o presidente da República.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, imediatamente transformou Bolsonaro em investigado. E determinou a Anderson Torres, coadjuvante do presidente na infame live do dia 29, que preste depoimento à Polícia Federal — no governo surreal de Jair Bolsonaro, o ministro da Justiça (chefe do chefe da PF) é delegado da PF… E vai depor a delegados da PF, seus pares. Cármen Lúcia, de sua parte, remeteu à PGR pedido de parlamentares para que Bolsonaro seja investigado por crime eleitoral.
“Ficou claro que os magistrados estão unidos e vão resistir a qualquer tentativa de melar a eleição”
Se as instituições estivessem funcionando, o Judiciário não precisaria agir de ofício: o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, estariam competindo pelo privilégio de tirar do poder um presidente que rasga a Constituição quase que diariamente. Mas Bolsonaro cooptou o PGR, que se faz de morto para não denunciar o presidente, e comprou o Centrão, que se recusa a votar e aprovar o impeachment. Sobrou para os juízes.
Para impedir Bolsonaro de ser candidato em 2022, ninguém precisa de Aras ou de Lira. Se o TSE comprovar que o presidente usou seu poder para desacreditar as eleições ou fazer campanha fora de hora — o que todo mundo sabe que é verdade —, qualquer um poderá pedir a cassação da candidatura de Jair Messias. A partir de agora, o capitão tem uma espada sobre a cabeça.
Ficou claro que os magistrados estão unidos e vão resistir a qualquer tentativa de melar a eleição, e é de se supor que muita gente tenha entendido o recado. O ministro Braga Netto — um general de quatro estrelas, até o início do ano passado integrante do Alto Comando do Exército — foi convocado a depor na Câmara, e nenhum militar protestou. Em movimento contrário, o Exército baixou uma portaria restringindo drasticamente o acesso dos generais ao Twitter.
O mais bolsonarista dos comandantes das Forças Armadas, brigadeiro Carlos Almeida Baptista Jr., procurou o ministro Gilmar Mendes, do STF, para reiterar que as Forças Armadas repudiam o golpismo. (Os militares continuam sendo quem sempre foram, mas terão percebido, quem sabe, que o caminho para o qual o presidente Bolsonaro quer empurrar o país não é bom para ninguém.)
O jogo mudou — e até Jair Bolsonaro entendeu.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750