Alto lá! A PEC do PT é inconstitucional; a liminar de Mendes é constitucional ainda que venha a ser derrubada — e não há motivos para tanto!
Espantosamente equivocada a entrevista que o cientista político Jairo Nicolau concedeu neste domingo a Isadora Peron, do Estadão, sobre o choque entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Pare ele — e não está sozinho nisso —, tudo não passou de uma rusga sem muita relevância, e os dois lados teriam sua parcela de culpa. Nicolau […]
Espantosamente equivocada a entrevista que o cientista político Jairo Nicolau concedeu neste domingo a Isadora Peron, do Estadão, sobre o choque entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Pare ele — e não está sozinho nisso —, tudo não passou de uma rusga sem muita relevância, e os dois lados teriam sua parcela de culpa. Nicolau está errado. E vou demonstrar por quê. Segue sua entrevista em vermelho. Comento em azul.
Há uma crise entre Legislativo e Judiciário?
Acho forte falar em uma crise entre Poderes. O que há são apenas rusgas entre setores do Congresso e do Supremo. Nas duas últimas décadas, houve momentos de tensão entre os dois. Uma crítica ao Congresso, ou um deputado criticando um ministro do STF. Mas não dá para falar em crise institucional. Há uma crise entre a deliberação do Gilmar Mendes e a decisão de uma comissão interna da Câmara.
Enfiar a cabeça no buraco não diminui o perigo. A Comissão de Constituição e Justiça, a mais importante da Casa, considerou constitucional uma PEC que submete decisões do Judiciário sobre Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) e súmulas vinculantes ao Congresso. No primeiro caso, prevê, se for o caso, um plebiscito. Tão ou mais deletério do que isso, o texto estabelece que uma lei ou PEC votada pelo Congresso só poder ser considerada inconstitucional por uma maioria de NOVE VOTOS!!! — 81,8% do Supremo. Se vocês se lembram, durante um bom tempo, a Casa operou com apenas nove ministros. Nesse caso, então, seria a unanimidade. Quem detém o controle de constitucionalidade na tripartição de Poderes? O STF ou o Congresso?
É evidente que o deputado Nazareno Fonteles (PT-PI) integra o esforço da tropa de choque petista para cassar prerrogativas do Supremo. Já está demonstrado à farta que esse é um movimento presente hoje em vários países da América Latina. Controlar o Judiciário é uma dos primeiros itens da pauta do Foro de São Paulo. Basta pesquisar um pouquinho.
Na sua gestão, lembra hoje reportagem de Cátia Seabra, na Folha, Marco Maia (PT-RS), ex-presidente da Câmara, criou a Comissão Especial de Aprimoramento das Instituições Brasileiras. Sempre que Maia, que chegou a viajar para o exterior secretamente só para não passar a presidência da Casa à vice, tenta “aprimorar as instituições brasileiras”, é bom as instituições tomarem cuidado porque estão em perigo. O presidente da estrovenga é Saraiva Felipe (PMDB-MG); o relator é Rogério Carvalho (PT-SE). Em tese, a comissão quer discutir o papel de cada Poder — salvo engano, a Constituição deixa isso muito claro. De fato, o que se quer é diminuir o Poder do Judiciário — leia-se: do STF.
Jairo Nicolau é estudioso da área. Pode fazer de conta que tudo não passa de uma rusgazinha. Mas pode também ampliar o olhar e perceber que os petistas estão hoje empenhados em outras tarefas, como cassar prerrogativas do Ministério Público, por exemplo. Sigamos com a sua entrevista
Em suma, apenas uma crise entre pessoas?
É uma decisão de alguns deputados, não da Câmara; e uma liminar de um ministro, não do Supremo. É como dizer que há uma crise entre Poderes quando a presidente Dilma veta um projeto do Congresso.
Errado! É a decisão da principal comissão da Câmara — que, por óbvio, é composta de alguns deputados. E a liminar, como é o caso em mandado de segurança, sempre é dada por um ministro — mas é decisão do Poder, quem disse que não? Da forma como ele fala, parece até que Mendes apenas emitiu uma opinião. Não! A liminar suspendeu a tramitação do projeto. Se o ministro recusar o recurso, será submetida a plenário — e, aí sim, poderá ser cassada ou referendada. Notem: o plenário, nessa rodada, nem vai se manifestar sobre o mérito do projeto. Vai apenas decidir se considera cabível ou não o mandado de segurança, com a liminar expedida. Caso venha a derrubá-la, é certo que os prejudicados pelo projeto, tão logo seja aprovado, recorrerão ao mesmo Supremo com uma ADI.
Essa troca de farpas entre os Poderes, então, é normal?
Para mim, crise é quando você tem deliberações fortes no Poder, uma votação de Adi, uma deliberação do STF contra o Congresso. Porque o que houve foi uma liminar de um ministro, que pode cair – pois o Supremo pode não reconhecer.
Pouco importa se o nome é crise, choque, rusga, bate-boca. O que importa é que a principal comissão da Câmara decidiu cassar prerrogativas do Supremo que são cláusulas pétreas. E que isso se dá num momento em que o principal partido do país se mostra empenhado em afrontar o Judiciário não para preservar o espaço de atuação do Congresso, mas porque está descontente com a punição de seus mensaleiros.
A liminar dada por Gilmar Mendes foi uma intervenção no funcionamento do Congresso?
Tanto a deliberação da Câmara me pareceu um pouco atabalhoada, porque é um tema forte, que não foi discutido com a sociedade, como a decisão do Gilmar me pareceu excessiva. Uma liminar sobre o ritmo deliberativo de outro Poder, não tenho dúvidas de que é intervenção. Qual o sentido disso? O papel do Supremo é pegar a deliberação final e questionar a sua substância. Aí eles vão avaliar se fere um princípio constitucional ou não.
Errado! A deliberação da Câmara não é apenas atabalhoada: é inconstitucional! Ainda que fosse discutida com a sociedade e ainda que esta sociedade quisesse que o Congresso e um plebiscito revissem decisões do Supremo, seguira sendo inconstitucional. Só uma nova Constituinte poderia definir um novo papel para o Supremo e para o Congresso.
Quanto à liminar de Mendes, eu também não tenho dúvida de que Nicolau está errado. A íntegra está aqui . É preciso lê-la para dar uma opinião consequente. Vamos lá:
— em ADI sobre o mesmo assunto (distribuição de tempo de TV e do Fundo Partidário em quando parlamentares migram para legendas recém-criadas), o Supremo decidiu por nove a dois em favor da migração. Tratou-se, professor Jairo, de uma interpretação conforme a Constituição. Assim, o projeto se torna, automaticamente, inconstitucional;
— já decidiu o próprio Supremo que interpretações conforme a Constituição não podem ser alteradas por legislação ordinária;
— a concessão da liminar se justifica porque, antes mesmo de sua aprovação, já provoca efeitos deletérios para os novos partidos que estão se criando. Já volto a esse ponto. Caso o projeto volte a tramitar e seja aprovado, não tenho dúvida de que será considerado inconstitucional pelo Supremo — a menos que Dias Toffoli, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello sejam doidos, ué! Todos eles, além de Cezar Peluso e Ayres Britto, que já não estão no tribunal, votaram em favor da transferência do tempo e do fundo junto com o deputado. Na atual composição, os únicos com direito a endossar o mérito do projeto seriam Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia, que se posicionaram contra o PSD. Mas, dada a interpretação conforme a Constituição, o lógico seria que nem eles — não cabe, afinal, alterar essa decisão por legislação ordinária. É a jurisprudência do Supremo.
Ora, não dá para fazer de conta que a aprovação de um projeto dessa natureza, ainda que venha depois a ser considerado inconstitucional pelo Supremo, não causa perturbação. É evidente que isso intimida parlamentares dispostos a migrar para novas siglas. Como, de resto, a proposta se insere num esforço da maioria para esmagar ainda mais a minoria, trata-se, como afirma Mendes na liminar, de garantir a igualdade de direitos na disputa política.
Nicolau está errado ao afirmar — e seria o caso de estudar a jurisprudência, então — que “o papel do Supremo é pegar a deliberação final e questionar a sua substância”. Não é só isso, não. O tribunal tem também o controle de constitucionalidade da atividade legislativa. Se um projeto de lei, flagrantemente inconstitucional, impede que as próprias forças do Parlamento se movimentem com a devida liberdade, é evidente que tem de intervir — nos limites da lei. E conceder uma liminar, provocado por um mandado de segurança impetrado por um parlamentar, é atribuição, sim, do Judiciário.
Acha justa a avaliação de Mendes de que o Executivo é que intervém ao propor tantas MPs?
A gente está no presidencialismo. A produção legislativa é uma cooperação entre Executivo e Legislativo. Este não tem a prerrogativa exclusiva de fazer leis enquanto o Executivo fica esperando. Desde a Constituição de 88 foi dada também ao Executivo essa prerrogativa. É uma deliberação constitucional. Se em algum momento o Executivo abusou, é outra história. Acho que essa comparação não procede.
Assim seria se assim fosse, mas não é. O governo administra o país por intermédio de MPs. A articulação política do Planalto é desastrosa, e Dilma “resolve” tudo por meio de vetos e novas… MPs! Até agora, o Congresso não conseguiu votar a nova lei do Fundo de Participação dos Estados, por exemplo. Jairo Nicolau parece ver harmonia onde há inação do Legislativo e óbvia hipertrofia do Executivo. Aí, um grupinho de espertos decide que o problema é o STF e avança em cláusulas pétreas da Constituição. Tenham paciência!
Equiparar a liminar de Mendes e a PEC do PT corresponde a não reconhecer as fronteiras entre o constitucional e o inconstitucional.