A liminar contra o projeto que quer dar o virtual monopólio do tempo de TV a Dilma e a sabatina do futuro ministro do Supremo: que os senadores cumpram o seu papel!
O estado de direito enfrenta hoje duas batalhas importantes: o Supremo decide o destino da liminar que suspendeu a tramitação de um projeto de lei que busca inibir a formação de novos partidos com o propósito específico de criar facilidades extras à candidatura oficial — no caso, a da presidente Dilma Rousseff, que concorre à […]
O estado de direito enfrenta hoje duas batalhas importantes: o Supremo decide o destino da liminar que suspendeu a tramitação de um projeto de lei que busca inibir a formação de novos partidos com o propósito específico de criar facilidades extras à candidatura oficial — no caso, a da presidente Dilma Rousseff, que concorre à reeleição. Na CCJ do Senado, dá-se a sabatina de Luís Roberto Barroso, indicado para assumir a 11ª vaga no tribunal, aberta com a aposentadoria de Ayres Britto.
Gilmar Mendes não concedeu a liminar suspendendo a tramitação do projeto porque queria criar dificuldades para Dilma. Isso é uma bobagem. Ele o fez porque o texto afronta interpretação conforme a Constituição, a lavra desse mesmo Supremo, sobre tema idêntico. E uma “interpretação conforme” é matéria constitucional — e não pode, segundo jurisprudência da Corte, ser afrontada por legislação ordinária. Já os senadores da CCJ, que vão sabatinar Barroso, não devem se deixar encantar pelo relatório eivado de rapapés do relator, Vital do Rego (PMDB-PB), beirando mesmo o constrangimento.
O que se cobra aqui é a altivez de dois dos Poderes da República. Cada um deles tem a sua área própria de competência. Seu papel não é nem afrontar o Executivo nem se submeter, mas estabelecer uma interlocução madura, altiva. A liminar concedida por Gilmar Mendes responde de forma que eu diria acachapante a todos os óbices que se possam opor a ela. É de tal sorte cuidadosa que dá luzes mais do que evidentes sobre o mérito da questão. Tentou-se, inicialmente, argumentar que o mandado de segurança era um instrumento descabido. Mendes demonstra o contrário com exemplos fartos ocorridos naquela Corte. Afirmou-se, em seguida, que o Supremo estaria impedindo o Congresso de legislar. Está mais do que demonstrado que aquela Casa tem o controle de constitucionalidade dos atos legislativos. Mormente quando uma proposta, em tudo casuística, fere cláusulas pétreas da Constituição, como o direito à livre organização e a livre associação partidária.
É óbvio que dispositivos constitucionais estão sendo ignorados para tentar manter os partidos numa camisa de força que é hoje do interesse do Executivo — e só por isso o governo Dilma se mobilizou e resolveu passar o rolo compressor sobre a Câmara e o Senado. Mas ainda que assim não fosse, ainda que estivesse ausente o aspecto casuístico, a proposta ofende a legalidade na sua essência. Meu prognóstico, nesse caso, confesso, não é muito favorável à defesa da democracia e da pluralidade política.
Placar e coerência
E é bom que fique claro: que Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia eventualmente votem contra a liminar é até compreensível. Eles se opuseram a que o tempo de TV e verba do Fundo Partidário correspondentes aos parlamentares migrantes fossem para o PSD. Mas seria realmente especioso ver Dias Toffoli (relator daquele caso), Luiz Fux, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello — todos ainda na Corte — a fazer o mesmo. Os outros que votaram a favor do PSD foram Cezar Peluso e Ayres Britto, que não estão mais no tribunal.
Sim, sim, conheço as diferenças. Desta feita se julga uma liminar; naquele caso, julgava-se o mérito. Ocorre que a diferença remete à mesma coisa. Explico-me: cassar a liminar agora, permitir que a votação se conclua no Senado — com o desfecho certo em favor da inconstitucionalidade —, CORRESPONDE A CRIAR UMA INIBIÇÃO DESDE JÁ À FORMAÇÃO DE NOVOS PARTIDOS. Se a liminar cair, o projeto será aprovado, e, certo como a luz do dia, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade chegará ao Supremo — aí, então, para que se avalie o mérito. E, por óbvio, não vejo como aqueles seis citados acima, além de Gilmar Mendes, possam dizer outra coisa, repetindo o que se deu no caso do PSD. O placar, a menos que exista gente querendo passar uma vergonha inaudita, será de, no mínimo, sete a quatro. Mas o prejuízo já terá acontecido, o que justifica a liminar.
Mas que se note: não estou propondo uma gambiarra. Só evidencio a lógica do processo e a ordem dos fatos. A liminar lustra a mais clara e transparente constitucionalidade. Nem por isso, infelizmente, quer dizer que se fará o melhor. Acho até que é grande o risco de que se faça o pior. Seis “amici curiae”, amigos da corte, falarão em defesa da liminar — entre eles, representantes da Mobilização Democrática e da Rede, partidos que têm base e votos, concorde-se ou não com eles, e que serão severamente prejudicados por uma patuscada casuísta e cartorial.
Agora Barroso
Na CCJ, trata-se de confrontar as muitas opiniões que doutor Barroso andou emitindo sobre o “novo constitucionalismo”, que, a rigor, de novo nada tem. O doutor faz certo esforço para chamar para si supostas concepções inaugurais de direito que estão por aí de há muito: se direitos fundamentais são agredidos ou não se cumprem porque Poderes da República deixam de cumprir a sua função, a Justiça tende a ocupar esse vácuo. O que parece um tanto novo na doutrina de Barroso, e este é o ponto, não me parece muito bom. No caso da união civil de homossexuais ou do aborto de anencéfalos, por exemplo, não havia vácuo nem na lei nem na Constituição. Ocorre que ele não gostava nem de uma nem de outra. E isso é muito diferente de um vazio legal. Ele, claro, atuou como advogado. O Supremo, então, é que cedeu a seu canto. Mas agora ele será ministro. E diz coisas confusas, contraditórias e até chocantes sobre a relação entre os Poderes.
Loquaz, loquólatra até, Barroso escreveu e disse algumas barbaridades sobre o caso do terrorista Cesare Battisti. Chegou a considerar a democracia italiana dos anos 1970 pior do que a ditadura brasileira do AI-5 e revelou uma concepção bastante suspeita do que seja imprensa saudável. Fiquei com a impressão de que ele a considera boa quando ela concorda com ele e um antro de distorção e ideologia reacionária quando discorda. Da mesma sorte, quando o Supremo toma o lugar do Legislativo em algo que tem o seu apoio, ele chama de “novo constitucionalismo”; se não tem, ele vira crítico do “ativismo judicial”.
Hoje, alguns grupos de pressão têm a ambição de bater às portas do Supremo para tudo. O doutor Barroso mesmo já andou declarando que é preciso fazer um “debate sem preconceitos” sobre o aborto. Eu poderia jurar que ele é a favor. Até aí, vá lá, pode ser. Mas será que ele acha que isso também é coisa que pode ser decidida pela Corte, sem os parlamentares? Um manifesto que chegou ao Supremo pretende que sejam os ministros a descriminar o porte de drogas — e, aí sim, que se danem os parlamentares. O que será que o doutor pensa disso? Sim, sei, ele não entrará no mérito de coisas sobre as quais deverá votar. Mas poderia nos iluminar sobre os limites que deve ter, então, um Supremo que legisla. Para ele, todas as questões atinentes a costumes e à formação da família devem passar longe do Congresso?
Sim, doutor Barroso andou sugerindo, ainda que com palavras um pouco mais oblíquas, que os mensaleiros foram bodes expiatórios de um sistema perverso. Será isso mesmo? Terão sido aqueles todos meros criminosos de circunstâncias, a tanto conduzidos pelo ambiente, por forças que estavam acima e além dos seus domínios? Então não era possível governar o Brasil segundo as leis vigentes? Então temos um sistema que pede a esperteza de ladrões?
Espero que os parlamentares cumpram a sua função. Bem perto dali, grupos cristãos prometem fazer uma grande manifestação em defesa da liberdade de expressão, da liberdade religiosa, da família tradicional e da vida — ou seja, contra o aborto. Doutor Barroso tem muito a dizer a respeito.
Que os senadores cumpram com hombridade o seu papel e não transformem mais esta sabatina num mero ritual homologatório.