Fliparacatu destaca potência da literatura das mulheres negras
O ineditismo do festival é a ancestralidade revelada
Quando os ventos do mundo mudam de direção rapidamente – vide a chegada de uma mulher negra e imigrante na disputa da presidência dos Estados Unidos – é sempre bom fazer o exercício de olhar ao seu redor.
Quem já havia entendido o espírito do tempo, o Zeitgeist, aquele conjunto de ideias que definem uma época?
No Brasil, mulheres negras têm publicado literatura desde o século 19 e na última década têm aumentado exponencialmente sua presença no mercado editorial brasileiro. Os festivais literários de Afonso Borges, o maior agente sobre o tema no país, na excelente e gabaritada companhia de Sérgio Abranches, Tom Farias e Léo Cunha, captaram este espírito do tempo.
KAMALA HARRIS
Kamala Harris, a mulher negra que fez sucesso como promotora antes de se tornar a primeira procuradora-geral do estado da Califórnia e a primeira senadora com origem afro-descendente, tirou a venda dos olhos de alguns, surpreendendo os Estados Unidos ao representar justamente esse espírito.
Não à toa, mas antes de ser escancarado por Kamala, o 2º Festival Literário Internacional de Paracatu revela essa mesma essência, trazendo de forma inédita a literatura da mulher negra. E de forma grandiosa, inclusive nos números.
O charmosíssimo festival literário terá muito mais mulheres negras do que autores brancos, homens ou mulheres.
A força da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, estará presente na abertura do evento em uma mesa com a jornalista, ativista, autora Bianca Santana – e sua luminosidade. A elas se somarão a nossa rainha, Conceição Evaristo, uma entidade viva, e muitas outras autoras negras.
Em Salvador, a cidade mais negra fora da África, a promotora de justiça Lívia Sant’Anna Vaz, parece ser um reflexo de Kamala Harris em sua trajetória no sistema de justiça como procuradora, mas com uma atuação ainda mais consistente no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial.
Lívia não só será uma das palestrantes, mas lançará o belo Abayomi: o reluzir dos encontros preciosos, em coautoria com Chiara Ramos. A publicação infantil é um conto afrodiaspórico sobre o amor entre irmãs, o amor entre gerações, o amor ancestral. Ao dizer, em outro livro, que “a Justiça é uma mulher negra e ela não anda só”, Lívia Sant’Anna Vaz evoca o anseio de estarmos lado a lado, construindo coletivamente uma nova sociedade, sentimento que aflora de maneira especial nessa FliParacatu.
É que o festival será palco também do lançamento do romance Cassandra em Mogadício, da escritora somali italiana Igiaba Scego, sobre imigrantes africanos na Europa da década de 90, mais especificamente na Itália, após os horrores da ditadura de Siad Barre, na Somália.
E, portanto, de novo: como não lembrar de Kamala, a filha de imigrantes que, como num passe de mágica, deslanchou na disputa à presidência dos Estados Unidos, podendo se tornar a primeira mulher negra a assumir esse cargo?
O romance Cassandra em Mogadício entrelaça a história familiar de Scego com temas de exílio, trauma e esperança, explorando as complexidades de viver entre duas culturas, como uma descendente de jamaicanos e indianos.
A força das mulheres negras passa também pela brilhante escritora Eliana Alves Cruz, que após arrebatar prêmios com os livros “A Vestida” e “Água de barrela” e inúmeros leitores com o “Solitária”, um dos mais vendidos da “Companhia das Letras”, entregou recentemente os originais de “Meridiana” para a editora. Será que Eliana conta mais detalhes?
O romance narra a trajetória de mulheres negras escravizadas e suas descendentes ao longo dos séculos, desde o período colonial até os dias atuais. O livro aborda temas como resistência, ancestralidade, racismo e a luta por identidade e liberdade. Através de uma narrativa instigante, a autora explora a força e a resiliência das mulheres negras brasileiras.
O festival terá atrações envolvendo esses nomes e outros como Aílton Krenak, Alessandra Roscoe, Djaimilia Pereira de Almeida (Portugal), Edney Silvestre, Eliana Marques, Emanuele Arioli (França), Estevão Ribeiro e seu abraço, Flávia Helena, Geni Núñez, Guilherme Amado, Itamar Vieira Junior, Jamil Chade, Jeferson Tenório, Joana Silva, Joca Terron, Léo Cunha, Lívia Sant’Anna Vaz, Marcia Tiburi, Marco Haurélio, Míriam Leitão, Myriam Scotti, Paloma Jorge Amado, Paulo Lins, Paula Gicovate, Roberto Parmeggiani (Itália), Ruth Manus, Sergio Abranches, Sérgio Rodrigues, Simone Paulino, Taiane Santi Martins, Teresa Cárdenas (Cuba), Tino Freitas, Tom Farias e Trudruá Dorrico.
Apesar de convidado para estar presente para tratar de memória, verdade e os 60 anos do golpe militar, este colunista quer mesmo ouvir os colegas escritores, especialmente essas mulheres negras, as “vozes-mulheres” de Conceição Evaristo (leia abaixo ou assista aqui) que trazem à tona a nossa verdadeira ancestralidade.
Axé, leitores! O festival acontece entre os dias 28 de agosto a 1 de setembro.
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Conceição Evaristo, em poemas da recordação e outros movimentos, 2017).