No texto anterior, discutimos o nivelamento entre a percepção democrática e os elementos que constituem o processo de (des)confiança do brasileiro no processo eleitoral, além de questionar mudanças para a escolha dos representantes do país. Para esta abordagem, iniciaremos com as premissas de Norberto Bobbio que, em “A era dos direitos”, ensina que a mais grave circunstância envolvendo direitos não é a da justificação, mas a da garantia. Queremos, então, com este tópico, perceber se a garantia constitucional ao exercício do sufrágio, realizada pelo voto, é respeitada ainda que diante de possível alteração na forma de votar.
O voto, um direito público subjetivo, correspondente a um dos mais importantes instrumentos democráticos — uma vez que possibilita o exercício da soberania popular e do sufrágio— tem como principais características ser: (i) pessoal; (ii) obrigatório; (iii) livre; (iv) secreto; (v) direto; (vi) periódico; e (vii) igual.
Na história constitucional brasileira, notamos ser possível se falar em uma espécie de gênese de Direito Eleitoral, desde a Constituição Imperial de 1824. Mas, a partir da Constituição Federal de 1891, que o Brasil passou, diante da ruptura institucional sofrida, a adotar o princípio republicano, com a eleição para os cargos de presidente e de vice-presidente.
O texto constitucional subsequente ao de 1891, da Constituição Federal de 1934, é, possivelmente, o que representa maior alteração à ordem constitucional, no que atine ao exercício do voto. É a partir da Carta Magna de 1934 que o voto passa a ser secreto e obrigatório, além de ser reconhecido como um direito também das mulheres. Essa Constituição é a responsável por estabelecer a Justiça Eleitoral.
Mas foi somente em 1988 que houve mudança substancial ao direito ao voto. Por meio do texto vigente, o voto passou a ser direto, secreto e obrigatório para os cidadãos com idade entre 18 anos e 70 anos, e facultativo para analfabetos, maiores de 70 anos, menores de 18 anos e maiores de 16 anos, e portadores de deficiência física. Foi também no ano de 1988, com o retorno do regime democrático, que houve alteração na Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, para prever expressamente o cadastro eletrônico dos eleitores.
No âmbito da legislação infraconstitucional, é importante notar que, na redação original do Código Eleitoral, Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, já havia previsão, em seu artigo 152, da utilização de “máquinas de votar, a critério e mediante regulamentação do Tribunal Superior Eleitoral”. Posteriormente, com o advento da Lei nº 6.978, de 19 de janeiro de 1982, acresceu-se parágrafo único ao artigo 173, com a finalidade de autorizar a adoção de sistema eletrônico de votação. O referido sistema eletrônico, criado para votação e contagem de votos, foi objeto de regulamentação nos artigos 59 a 62 da Lei das Eleições, Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.
O professor Jairo Nicolau, na obra “História do voto no Brasil”, expôs de maneira bastante minuciosa a evolução do processo eleitoral no país, sempre com intento de modernização — embora em face de oscilações na democracia. Em síntese:
No ordenamento jurídico brasileiro, o voto tem como base jurídica a Constituição Federal, o Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965), a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), a Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995), a Lei de Inelegibilidade (LC nº 64/1990), a Lei da Ficha Limpa (LC nº 135/2010), sem prejuízo de outras normas jurídicas em sentido lato, como as derivadas de atos normativos dos Tribunais Eleitorais, bem como da jurisprudência e doutrina acerca da matéria.
Com isso esclarecemos: não encontramos na norma constitucional ou infraconstitucional, seja nos textos vigentes, seja no remontar histórico, qualquer indicação proibitiva à adoção de sistema de votação online. Pelo contrário, o evoluir normativo, no âmbito eleitoral, parece encaminhar à persecução da modernização da forma de votar, com a atribuição da celeridade, da segurança e da transparência, princípios essenciais do processo eleitoral.
A utilização de nova forma de votar — destacadamente online — teria de somente observar duas importantes normas constitucionais: a anuidade (art. 16 da CF/88) e a legalidade (art. 37, caput, da CF/88) .
Tanto no artigo anterior, quando no seguinte, considerando o que já foi abordado, sugeriremos solução ao problema da ausência de confiança institucional do brasileiro, que seria obstáculo à implementação de novo sistema de exercício de voto. Apresentaremos, em sequência, exemplos de votação online em Direito Comparado, para, por fim, avaliar a possibilidade de uso da tecnologia de Blockchain nas eleições brasileiras.
Desde logo, é importante ressaltar que, do ponto de vista legal, a utilização da tecnologia de Blockchain tem recebido bastante atenção no âmbito do governo brasileiro. Apenas no ano de 2020, dois Decretos foram promulgados com determinações quanto ao uso da nova tecnologia.
O Decreto nº 10.332, de 28 de abril de 2020, que “institui a Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e dá outras providências”, estabelece, como objetivos: (i) “disponibilizar, pelo menos, nove conjuntos de dados por meio de soluções de blockchain na administração pública federal, até 2022”; e (ii) “implementar recursos para criação de uma rede blockchain do Governo federal interoperável, com uso de identificação confiável e de algoritmos seguros”.
O Decreto nº 10.550, de 24 de novembro de 2020, que altera o Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009, que “regulamenta a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior”, passou a permitir que, em relação à fatura comercial, a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia possa “dispor formas de assinatura mecânica ou eletrônica, permitida a confirmação de autoria e autenticidade do documento, inclusive na hipótese de utilização de blockchain”.
Ainda quanto à aceitação e capilaridade da tecnologia de Blockchain, é relevante apontar o projeto “Eleições do Futuro”, criado pelo Tribunal Superior Eleitoral, que deu ensejo à publicação do Edital de Chamamento Público nº 01/2020 (processo nº 2020.00.000007111-5), o qual teve como escopo: (i) “identificar e conhecer soluções de votação, preferencialmente on-line, de empresas ou instituições de direito privado”; (ii) “apresentar ao mercado os requisitos mínimos definidos preliminarmente pelo Tribunal Superior Eleitoral para inovações no Sistema Eletrônico de Votação”; e (iii) “disponibilizar agenda para reuniões técnicas individualizadas com empresas interessadas, com vistas ao esclarecimento de eventuais dúvidas sobre como participar e demonstrar sua solução de votação, durante as Eleições 2020”.
As propostas que mais chamaram atenção do Tribunal Superior Eleitoral, em sede do “Eleições do Futuro”, foram todas relacionadas a aplicações baseadas na tecnologia de Blockchain.
Para o próximo artigo, a terceira e última parte, avançaremos em um horizonte pouco explorado, considerando o voto online como um horizonte possível ao processo eleitoral brasileiro. Neste caso, apontamos a tecnologia de Blockchain como a plataforma detentora das características necessárias à confiança e credibilidade para a realização de eleições por meio do voto à distância e online.
*André Silveira é mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Público pelo IDP e sócio do Sergio Bermudes Advogados