A discussão sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 135-A, de 2019, que previa o retorno do voto impresso no Brasil, sofreu três derrotas sequenciais na Câmara dos Deputados, sendo rejeitada pelo Plenário da Casa Legislativa em agosto deste ano. Todo esse debate ampliou a noção de outras perspectivas acerca dos processos eleitorais no Brasil, incluindo expectativas e estudos para um modelo de votação online, cuja ideia vem ganhando força e aderência ao redor do mundo, pelas mesmas justificativas daqueles que defendem o voto em papel: transparência e confiabilidade.
Para compreender o histórico eleitoral brasileiro, vale revisitar, rapidamente, a década transcorrida entre os anos 2010 e 2020, marcada pela falta de consensualidade quanto à forma de exercício do direito ao voto. Nesse período, o Supremo Tribunal Federal teve de se manifestar duas vezes quanto à possibilidade de retorno ao voto impresso, circunstância afastada do ordenamento jurídico brasileiro desde a promulgação da Lei nº 10.470, de 1º de outubro de 2003, que implantou o registro digital de voto.
Apesar de não encontrar indicações proibitivas à alteração na maneira de votar junto às normas constitucional e infraconstitucional, pesquisas demonstram que as dificuldades para as mudanças, na verdade, se verificam nos limites sociopolíticos, derivados da percepção do brasileiro acerca das práticas de corrupção no país e a consequente falta de confiança institucional. A partir desses estudos, é possível entender que o desconfiar do brasileiro, diante dos processos corruptivos aos quais foi exposto, integra o inconsciente coletivo da população.
Em meio a esse conturbado cenário, para evitar desvios de energia das autoridades, o Poder Legislativo brasileiro deveria estar atento ao futuro e não ao passado (voto impresso). Com efeito, a eclosão da pandemia causada pelo coronavírus suscitou nova questão ao exercício do voto. Diante da necessidade de distanciamento social, indicada por profissionais de saúde, a possibilidade de se votar à distância passou a integrar a pauta de diversas jurisdições ao redor do mundo.
Assim, nesta série de artigos, e consciente das agruras do período em que se insere, procuramos, em três partes, responder, ainda que com aspirações iniciais, à seguinte questão: “seria possível a adoção de modelo online de votação no Brasil?”.
Nesta primeira parte do trabalho, vamos estabelecer os “Limites sociopolíticos à adoção do voto online”. No ano de 2020, o Brasil passou a ocupar a 94ª (nonagésima quarta) posição no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) – indicador considerado o de maior relevo mundial para avaliação da percepção quanto a práticas de corrupção em seus países. A posição ocupada pelo Brasil é bastante inferior, por exemplo, à ocupada por países vizinhos, da América Latina, que ocupam a posição 41ª (quadragésima primeira), em média.
A partir da análise desse indicador, observamos que a corrupção é percebida pelo brasileiro como uma das questões mais conflitantes quanto à confiança nas instituições democráticas. Exemplo disso é que, no ano de 2015, em pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha, a corrupção foi, pela primeira vez, entendida como o maior problema do país.
Em sentido semelhante, em uma pesquisa realizada pelo Instituto Latinobarómetro, que teve como recorte temporal de 1995 a 2006, concluiu-se que a média de apoio do brasileiro à democracia era de, no máximo, 50%. Em outras palavras, a cada dois brasileiros entrevistados, um não considerava a democracia o sistema de governo adequado (disponível no portal Latinobarómetro – Opinión Publica).
A relação entre este dado e o fenômeno da corrupção pode ser observada no trabalho “Marcos teóricos da corrupção” no qual o cientista político Leonardo Avritzer aponta que, para o brasileiro, a corrupção é um fenômeno concentrado especificamente no campo da atividade estatal.
Ainda quanto a essa relação, José Álvaro Moisés, em “Democracia e confiança: por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas”, analisando o “Intelligence Unit Democracy Index”, atesta que, quanto maior a observância do nacional quanto à corrupção, proporcionalmente é menor a sua percepção de liberdades civis e políticas.
Todas essas pesquisas importam ao que se quer questionar neste artigo, e nos subsequentes, em uma mesma medida: a da (des)confiança do brasileiro nas instituições democráticas, que pode ser observada por meio de dois conceitos fundantes: (i) o de confiança institucional; e (ii) o de complexo cultural.
A cientista política Pippa Norris, professora da Harvard University, em texto seminal sobre o tema, definiu que a confiança institucional deve ser compreendida como um fenômeno relacional e racional, oriundo de avaliações, informações, conhecimentos, percepções e, principalmente, das experiências concretas dos indivíduos com as instituições.
Para estudiosos da psicologia analítica, como Walter Boechat, Roberto Gambini e Dulce Helena Briza, em análise específica do caso brasileiro, é possível entender que esse cenário, composto por corrupção e escassez de confiança institucional, perfaz o complexo cultural do nacional, um “agregado emocionalmente carregado de memórias históricas, emoções, ideias, imagens e comportamentos que tendem a se agrupar em torno de um núcleo arquetípico que vive na psique de um grupo e é compartilhado por indivíduos dentro de um coletivo identificado” (Listening to Latin America. New Orleans: Spring Journal, 2012).
Desse modo, temos, sim, limites sociopolíticos à mudança na maneira de se votar. Um novo modelo de votação deve, em consideração à falta de confiança institucional e ao complexo cultural, que integram o pensamento pátrio, ter por objeto maior a construção de relação de fidúcia entre quem elege, quem é eleito, e – principalmente – quem apura a votação.
No próximo texto, a segunda parte do artigo, falaremos sobre “O voto na história do ordenamento jurídico brasileiro”. A análise explicitará a garantia constitucional do exercício eleitoral, como um dos mais importantes exercícios democráticos para uma nação, expondo ainda, de maneira minuciosa, a evolução do processo eleitoral no país entre 1824 a 2000.
*André Silveira é mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Público pelo IDP e sócio do Sergio Bermudes Advogados