O papel de guarda da democracia e da Constituição, somado à pandemia do coronavírus, têm feito o Supremo Tribunal Federal (STF) viver um momento de rara união nos últimos tempos. Ministros que eram desafetos ferrenhos, e que já protagonizaram cenas públicas de conflitos, têm votado juntos e até mostram concordância nas redes sociais.
“Estamos mantendo a tradição”, disse à coluna um ministro e ex-presidente do STF. “Quando a questão é o Brasil vamos nos unir sempre”. Segundo o magistrado, o ponto que permite superar qualquer divisão é a defesa da Constituição “que subordina a todos, inclusive nós”. Justamente a Constituição foi ameaçada naquela manifestação de domingo 19, em frente ao Forte Apache, ou Quartel-General do Exército, em Brasília, com a participação do presidente Jair Bolsonaro.
“É tão agressivo o que aconteceu naquele domingo, quando o presidente da República participou de um ato antidemocrático no Exército em meio a uma pandemia que exige o isolamento social, que todo mundo ficou na mesma posição. Todas as vezes que se ataca e se ultraja a democracia, o guarda da constituição, o guarda da democracia, se une. O institucional fica maior que o individual”, explicou este ministro do STF.
O magistrado lembra um fato que chamou a atenção de quem acompanha as redes sociais. No dia da adesão de Bolsonaro ao ato pró-intervenção militar, em Brasilia, quando o presidente fez, na definição desse ministro, um “detestável discurso” entrecortado por acessos de tosse, houve uma cena de pacificação no Supremo. O ministro Luís Roberto Barroso reagiu com uma firme declaração no twitter contra a saudosismo à ditadura militar. Gilmar Mendes logo retuitou.
“É assustador ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia. Defender a Constituição e as instituições democráticas faz parte do meu papel e do meu dever. Pior do que o grito dos maus é o silêncio dos bons (Martin Luther King)”, dizia a mensagem de Barroso que foi compartilhada por Gilmar. Os dois ministros, como se sabe, tiveram brigas públicas inesquecíveis, como em março de 2018, quando Barroso disse que a vida de Gilmar que era “ofender as pessoas”.
Mesmo na época da ditadura o STF tentou defender a Constituição. Logo após o golpe de 1964, que levou o país a 21 anos de regime militar, o então presidente Castello Branco, em “visita de cortesia” ao tribunal, pediu que o STF seguisse “as orientações da revolução”. Na ocasião o então presidente do STF, Álvaro Ribeiro da Costa, apesar do histórico de apoio ao golpe, afirmou que a mais alta corte do país não deveria ser submetida à nenhuma ideologia.
A união do STF, explique-se, não significa que os ministros terão sempre votações unânimes, mas até tem acontecido em ações em relação ao coronavírus. Algumas delas derrotando inclusive atos discricionários do Executivo. Nas últimas semanas, por exemplo, os ministros decidiram que os governos estaduais e municipais têm competência para definir regras de isolamento e de quarentena, além de determinar restrições de transporte e trânsito em rodovias durante a pandemia do coronavírus.
A decisão unânime irritou o presidente da República e ele deu demonstrações públicas disso. Os nove ministros que participaram da sessão por videoconferência votaram da mesma forma. Em outra decisão unânime recente os ministros aprovaram súmula que fixa que a imunidade tributária dada pela Constituição a papel, jornal, livros e periódicos também se aplica aos livros digitais e seus componentes.
Na última semana, a corte se dividiu ao julgar questionamento sobre possibilidade de que Medidas Provisórias (MPs) sejam instruídas por sessão remota no plenário da Câmara dos Deputados e do Senado Federal mediante a emissão de parecer por parlamentar previamente designado, em substituição à Comissão Mista. Estava para terminar 5 a 5, quando o presidente do STF, Dias Toffoli, pediu vista.
Nas votações de “varejo”, explica outro ministro ouvido pela coluna, as divergências continuam, o antagonismo permanece e pode até haver discussões polêmicas. No “atacado”, quando se fala em democracia constitucional, “vamos estar juntos”. E agora “o momento é de atacado”, conclui. “Temos responsabilidade histórica, e quando a democracia foi atacada daquela maneira no ato em frente ao Exército, tivemos de lembrar que somos a guarda da Constituição e da Democracia”, afirmou.
Ele conta que Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello não se falam, nem se cumprimentam há quatro anos, mas em votos recentes há citações recíprocas. No dia a dia, continuam opostos, cada um olhando o mundo e o Brasil à sua maneira. Isso não mudou.
Mas diante dos arroubos do presidente Jair Bolsonaro, que geram crises quase diárias, a tendência tem sido de união. Segundo a avaliação de um dos magistrados ouvido pela coluna, a gravidade da situação leva o tribunal ao seu papel principal: o de assumir a responsabilidade de submeter todos à Constituição. Inclusive o presidente da República.