O Supremo resolveu impor limites à espionagem doméstica da Agência Brasileira de Inteligência. Foi instituído um filtro judicial duplo sobre as atividades da Abin na coleta de informações sobre pessoas e organizações dentro do país.
A agência, primeiro, vai precisar demonstrar a existência de interesse público nas investigações em defesa das instituições, para eliminar “qualquer possibilidade de o fornecimento desses dados atender a interesses pessoais ou privados”.
Se confirmado o interesse público, a Abin deverá se submeter a um “controle de legalidade” do Judiciário para ter acesso aos bancos de dados dos órgãos públicos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência, o guarda-chuva jurídico da agência para coleta de informações.
A Abin operava praticamente sem controle desde a criação, há 22 anos, quando substituiu o aparato de espionagem política mantido pela ditadura no extinto Serviço Nacional de Informações. Ela já é acusada no Supremo, junto com o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, por “atuação indevida” em investigações criminais envolvendo um dos filhos parlamentares do presidente, o senador Flávio Bolsonaro
A decisão do STF, divulgada ontem, aconteceu na sexta-feira. Foi por unanimidade e balizada pela juíza Cármen Lúcia, que definiu: “Inteligência é atividade sensível e grave do Estado. ‘Arapongagem’ não é direito, é crime. Praticado pelo Estado é ilícito gravíssimo. O agente que adotar prática de solicitação e obtenção de dados e conhecimentos específicos sobre quem quer que seja fora dos estritos limites da legalidade comete crime.”
Ela relatou uma ação do Partido Socialista Brasileiro e da Rede Sustentabilidade. Ambos contestaram a constitucionalidade de parte da legislação (nº 10.529/2021) que deu à Abin pleno acesso aos bancos de dados de órgãos públicos a partir de simples requisição ao presidente da República, “cliente” exclusivo da agência.
Os partidos se mobilizaram a partir de um histórico de evidências de fragilidades do Legislativo e do Judiciário na supervisão das atividades de espionagem dentro do país.
Foram motivados por iniciativas de Jair Bolsonaro, que resultaram na maior expansão operacional da Abin desde sua criação.
Houve uma série de mudanças na legislação e em normas do serviço secreto, realizadas com discrição e sem debate no Congresso. Foram erguidas porque, sem controle efetivo, poderiam dar margem a desvios de finalidade na coleta e no uso de informações.
Em julho do ano passado, por exemplo, Bolsonaro assinou um decreto (nº 10.445/2020) mudando a estrutura operacional da Abin. O texto deixava aberta a possibilidade de o diretor-geral da agência obter dados sigilosos sobre pessoas e organizações a partir de uma singela requisição, verbal ou escrita.
Na prática, os 48 organismos federais já forneciam informações à Abin, mas de maneira passiva e com limites definidos nas respectivas responsabilidades de sigilo. O decreto não apenas formalizou a integração a um sistema de espionagem projetado com ambição e abrangência nacional, como tornou obrigatório o repasse de informações, sigilosas ou não, “sempre que solicitadas”.
E mais: estabeleceu como norma a designação de funcionários dessas seções governamentais para trabalhar no Centro Nacional de Inteligência, unidade da Abin responsável pela produção de relatórios a partir de uma “coleta estruturada” de dados que, em tese, pode abranger informações fiscais, bancárias, telefônicas e telemáticas.
A juíza Cármen Lúcia, no seu relatório, registrou denúncias recentes recebidas no Supremo sobre “desvio de finalidade na atuação de membros das forças de segurança” do governo Bolsonaro.
Citou o caso de uma “suposta atuação indevida do Gabinete de Segurança Institucional e da Agência Brasileira de Inteligência em investigações criminais envolvendo o senador Flávio Bolsonaro”.
Lembrou, também, de outra ação na qual questiona-se decisão do Ministério da Justiça de promover “investigação sigilosa” sobre um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança auto-identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’ — entre eles, policiais e professores universitários.
Observou que a Constituição “repudia poder sem controle, exige a motivação dos atos administrativos e que todos eles se guiem pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. E determinou que na rotina da Abin sejam adotados procedimentos formais “imprescindíveis” em sistemas eletrônicos com efetiva segurança e registro de acesso, “inclusive para efeito de responsabilização em caso de eventual omissão, desvio ou abuso”.