Manhã de outono, sete anos atrás. Cinco homens sentaram-se para almoçar no 16º andar da sede do Tribunal de Contas, na Praça da República, recanto de ladroagens no Centro do Rio. A sexta cadeira ficou vaga, notaram os garçons que tudo veem, tudo sabem e, quase sempre, nada contam. A ausência de José Mauricio Nolasco agravou a tensão à mesa, mas deu mais espaço para Domingos Brazão, Marco Antonio Alencar, Aloysio Neves, José Gomes Graciosa e Jonas Lopes de Carvalho Jr.
Dono de dois terços dos votos no TCE, o quinteto era suspeito de corrupção em contratos com empreiteiras e fornecedores de comida aos presídios do estado do Rio. “Quinto do Ouro”, anunciava o título do inquérito, numa irônica remissão à parte (20%) cobrada pela Coroa portuguesa sobre a mineração de ouro no Brasil Colônia.
Carvalho comentou sobre a apreensão de Nolasco, o ausente ex-presidente do tribunal:
— Ele pode acabar fazendo uma delação…
O conselheiro Brazão retrucou, fria e pausadamente:
— Se fizer isso, morre. Começo por um neto, depois um filho. Faço ele sofrer muito, e, no fim, ele morre.
Carvalho entendeu o sentido da palavra “medo” — contou em delação premiada. O processo Quinto do Ouro agora reluz em “sólidos elementos de autoria e materialidade”, informa o Superior Tribunal de Justiça.
Semana passada, Domingos Brazão foi preso com o irmão João Francisco (“Chiquinho”), ex-vereador e deputado federal. São acusados de alugar ex-policiais militares para matar a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes. E, também, de pagar previamente (300 000 reais) ao então chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, para acobertá-los nas investigações. Eles negam.
“O clã Brazão é caso exemplar de riqueza construída entre o crime e a política”
O clã Brazão é caso exemplar de riqueza construída na ponte entre dois mundos, o do crime e o da política. Ressalvadas as peculiaridades do Rio, enclave portuário brasileiro onde mais vicejam grupos armados sob patrocínio estatal, o caso resume o avanço do banditismo amparado por políticos beneficiários.
Domingos, 59 anos, é o chefe. Começou como vereador pela Zona Oeste do Rio. Cresceu em parcerias eleitorais com personagens destacados na política fluminense, como o governador Cláudio Castro, o prefeito Eduardo Paes, o ex-governador Sérgio Cabral Filho, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, o ex-presidente Jair Bolsonaro e seu filho senador, Flávio. Depois de cinco mandatos na Assembleia, obteve um cargo vitalício no órgão de fiscalização e controle das contas do governo e de prefeituras. Lá continua, com salário de 48 000 reais e sessenta dias de férias por ano, além de mordomias. Nesse período, elegeu os irmãos: “Chiquinho” é deputado federal e Manoel Inácio (“Pedro”) é estadual.
Em três décadas, o ex-balconista de lanchonete em Jacarepaguá se tornou uma das maiores fortunas da política carioca. Por enquanto, a polícia só mapeou parte dos seus negócios em obscuras associações com máfias de jogos e milícias policiais. Brazão já deu pistas sobre a evolução da sua riqueza: no espaço de oito anos (2002-2010) declarou crescimento patrimonial de 2 300%, mas “esqueceu” propriedades, empresas e até um Porsche.
A prioridade do clã Brazão são as decisões e as legislações municipais para flexibilizar a regularização fundiária na região metropolitana do Rio. Foi um dos motivos determinantes, entende a polícia, para o assassinato da vereadora da oposição Marielle Franco. Seria, também, uma das razões da associação com as famílias Abraão David, em Nilópolis, e Cozzolino, em Magé. A cada grilagem surge um novo condomínio irregular, fonte de lucros em imóveis e serviços (da luz ao gatonet). E, principalmente, nasce um “curral” eleitoral, onde milícias controlam da propaganda ao voto em candidatos escolhidos.
A simbiose de banditismo e política avança em vários estados, no governo, no Judiciário, no Ministério Público e no Legislativo. A tintura de anarquia institucional deixa tudo mais visível no Rio. Nos últimos dezoito meses, por exemplo, dois ex-chefes da polícia fluminense foram presos como agentes duplos, acusados de servir à lei e ao crime. Allan Turnowski, em 2022, tentava se eleger deputado federal pela fração bolsonarista do Partido Liberal. Rivaldo Barbosa, na semana passada, dava aulas de direito criminal.
Se está ruim, pode piorar. A Assembleia do Rio mudou a Lei Orgânica da Polícia e, agora, deputados estaduais têm poder real sobre a estrutura policial. Como prevê a “lei de Murphy”, se alguma coisa pode dar errado, vai dar.
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Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886