Jair Bolsonaro ameaça chegar à perfeição. Ontem anunciou que o governo planeja uma intervenção na política de preços da Petrobras, para que “dê lucro não muito alto como tem dado”.
De janeiro a setembro, a companhia de petróleo rendeu R$ 63,4 bilhões (cerca de US$ 12 bilhões) em lucro aos acionistas. É consequência da alta de preços do óleo no mercado mundial, com aumento de mais de 50% neste ano.
Significa um extra de R$ 24 bilhões (US$ 4,5 bilhões) no caixa do Tesouro Nacional. É o volume de dinheiro a ser repassado como dividendos — a parte dos lucros devida ao Estado, o acionista-controlador, dono de quase 38% das ações com direito a voto.
Não é pouco. Essa dinheirama seria suficiente, por exemplo, para pagar 68% do custo do programa Bolsa Família neste ano. E se a essa bolada fossem somadas as verbas orçamentárias (R$ 16 bilhões) entregues por Bolsonaro ao controle dos líderes do Centrão, o governo financiaria sem dificuldade os programas sociais destinados aos pobres.
Não é tudo. Entre janeiro e setembro a Petrobras recolheu aos cofres públicos R$ 134,1 bilhões (equivalente a US$ 25,3 bilhões) em pagamento das taxas cobradas pelo Estado sobre produtos como gasolina, diesel e gás de cozinha.
Nada menos que 51% desse valor foi transferido diretamente aos cofres da União, como tributos federais e royalties, ou participações governamentais na produção de petróleo.
Para Bolsonaro, no entanto, a Petrobras lucrativa representa ameaça eleitoral, por causa dos preços dos derivados de petróleo. “Ela tem que ter o seu viés social, no bom sentido”, argumenta.
O raciocínio do candidato à reeleição contém uma visão peculiar do governo e do Estado. Ele finge não distinguir a diferença, e induz à confusão entre o público e o privado: os lucros acumulados pela empresa neste ano, diz, “favorecem apenas os acionistas, não a sociedade”.
É uma lógica tortuosa, porque o Estado é proprietário do controle acionário (cerca de 38%) da empresa. E, como se sabe, Estado é a nação, politicamente estruturada. Ao ser eleito presidente, por exemplo, Bolsonaro se tornou chefe de Estado. Possivelmente, se esqueceu ou não quer lembrar desse detalhe.
Sobra a imagem de um presidente pitoresco num governo errático em fim de mandato. Seu desejo manifesto de que a Petrobras pare de dar lucro “muito alto” ressoa uma história inusitada relatada pelo economista e deputado Roberto Campos, ícone do liberalismo no século passado, no livro de memórias “A lanterna na popa“.
Embaixador em Washington, Campos tentava reabrir linhas de crédito do Banco Mundial ao Brasil. Precisava de projetos. De passagem pelo Rio, em 1963, visitou Expedito Machado, ministro de Obras Públicas do governo João Goulart. Começaram a conversar e a sala foi invadida por líderes sindicais da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, grande empresa estatal da época.
“Com tonitruante vozeirão”— conta— “o líder, com forte sotaque nordestino, começou sua arenga: — Ministro, quero denunciar ao senhor e à nação um crime da maior gravidade. Querem impelir o Lloyd Brasileiro para o caminho infame do lucro!”
“Aparentemente, algumas reivindicações salariais não haviam sido atendidas, e isso denotava obscena preocupação capitalista do Lloyd com a lucratividade.
— Como é que o ministro vai sair dessa? — murmurei.
A resposta de Expedito veio pronta.
— Não se preocupem, meus senhores. O déficit logo será restabelecido. O Lloyd não se afastará da sua tradição!”