Foi o ministro Walter Braga Netto, chefe da Casa Civil da Presidência em março do ano passado, que conduziu o plano de produção e distribuição de cloroquina contra a Covid-19 em todo o país.
Braga Netto, atual ministro da Defesa, assumiu a Casa Civil no dia 18 de fevereiro de 2020. Na época existiam apenas dois casos suspeitos de infecção pelo novo coronavírus — um em São Paulo, confirmado, e outro no Rio Grande do Sul, logo descartado. Quando ele saiu da chefia do Estado-Maior do Exército, passou à reserva e assumiu a Casa Civil, o governo já acumulava evidências de perda de controle na gestão da crise sanitária.
Jair Bolsonaro havia imposto a operação da crise em dupla frequência, sem qualquer sintonia — de um lado, o Ministério da Saúde, chefiado por Luiz Henrique Mandetta, de outro os assessores escolhidos pelo presidente.
Bolsonaro não ouvia o ministro Mandetta, nem os técnicos da área. Discutia a pandemia com os então ministros Osmar Terra (Cidadania), Onyx Lorenzoni (antecessor de Braga Netto na Casa Civil), Abraham Weintraub (Educação), Arthur Weintraub (assessor presidencial) e um dos filhos parlamentares, o vereador Carlos Bolsonaro.
Em março, a Organização Mundial de Saúde confirmou a pandemia. O debate no Palácio do Planalto passou a ser focado no cenário de uma eventual imunidade de rebanho — com mais da metade da população contaminada — e nas possibilidades de um “remédio”, a cloroquina.
A tese da imunidade de rebanho progrediu a partir de projeções feitas com base em amostras de sangue coletadas em instituição pública de Manaus. No Ministério da Saúde esse levantamento foi criticado e logo descartado pela fragilidade metodológica.
Na Saúde, as avaliações internas indicavam um cenário oposto, de alto risco. No pior deles, o chefe do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, Julio Croda, estimou 180 mil mortes. Havia outro, moderado, indicando 60 mil mortes e um terceiro, esperançoso, de 30 mil mortes.
Essas projeções tinham a mesma premissa: rígido controle sanitário em todo país, reforçado por campanhas nacionais de distanciamento social e de higiene, o que só poderia ser levado adiante em ambiente de alguma harmonia política, de Bolsonaro com os governadores estaduais.
Bolsonaro, no entanto, estava decidido a apostar no “remédio”, a cloroquina, como propunham o deputado Osmar Terra, alguns médicos convidados ao Planalto, e Onyx Lorenzoni, agora ministro da Cidadania.
Era a alternativa política mais conveniente para lidar com o temor dos efeitos econômicos potencialmente desastrosos para sua campanha de reeleição.
“Essa é a preocupação que eu tenho, se a economia afundar, afunda o Brasil” — disse na segunda-feira 16 de março. Acrescentou: “E qual o interesse, em parte, com toda certeza, dessas lideranças políticas? Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder.”
No final desse dia, anunciou-se a criação de um Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19. Na coordenação figuravam o ministro Braga Netto e um de seus assessores, Heitor Freire de Abreu, subchefe de Articulação e Monitoramento da Casa Civil.
Era a quinta instância burocrática estabelecida na Esplanada dos Ministérios exclusivamente para tratar da crise sanitária, como constataram fiscais do Tribunal de Contas da União em auditoria realizada nos dias seguintes.
O comitê dirigido por Braga Netto era o corpo e a alma do governo. No papel, foi composto por sete ministérios (Saúde, Justiça e Segurança Pública; Defesa; Relações Exteriores; Economia; Cidadania; Mulher, Família e Direitos Humanos); cinco órgãos da presidência (Secretaria-Geral; Secretaria de Governo e Gabinete de Segurança Institucional; Advocacia-Geral e Controladoria-Geral da União); a agência de vigilância sanitária (Anvisa) e quatro bancos públicos (Banco Central, Banco do Brasil, Caixa e BNDES).
Na estrutura burocrática para a Covid-19 já existiam: Comitê de Monitoramento de Eventos; Grupo Executivo Interministerial de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e Internacional; Gabinete de Crise da Covid-19; e o Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública COVID-19 do Ministério da Saúde.
Essa superposição de órgãos e competências, sem clareza sobre aquilo que cada um deveria fazer, qual era a fronteira de atuação e respectivas responsabilidades, está na gênese da perda do controle governamental na gestão da pandemia. Aniquilou a capacidade de resposta, explicam auditores do tribunal de Contas em documentos entregues à CPI da Pandemia.
Braga Netto deu à opção presidencial pela cloroquina a forma de uma política pública paralela à executada pelo ministro da Saúde. Na terça-feira (17), realizou a primeira reunião do seu comitê e orientou ministérios na divulgação das ações de “enfrentamento” para “esclarecer a população”. Ao Ministério da Defesa pediu agilidade no aumento da produção de cloroquina.
Três dias depois, na sexta-feira (20) ele recebeu e despachou um pedido de dispensa de licitação para o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército comprar insumos. Na justificativa explicitou-se a utilização do remédio no tratamento da Covid-19, conforme documentos enviados pelo Ministério da Defesa à CPI revelados pelos repórteres Leandro Prazeres, do Globo, Claudia Bomtempo, Marcelo Paranhos e Paloma Rodrigues, da TV Globo.
Na manhã seguinte, sábado, Bolsonaro divulgou nas suas redes sociais video informando que informou ao então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, sobre sua decisão de difundir a cloroquina e mandou o Exército “imediatamente ampliar a produção desse medicamento”.
O ministro da Saúde resolveu procurar o chefe da Casa Civil para mostrar as projeções sobre mortes na pandemia. A reunião foi marcada para o final da tarde de sexta-feira (27). Na sala de Braga Netto estavam Sergio Moro, então ministro da Justiça, e duas assessoras. Mandetta levou um assessor, Renato Strauss. O encontro acabou com o chefe da Casa Civil disposto a intermediar uma reunião do ministro da Saúde com o presidente.
Braga Netto sabia que o plano de fabricação e difusão da cloroquina já alcançara a linha de produção do laboratório do Exército, com a chegada dos insumos comprados sem licitação.
Março terminava com a pandemia em aceleração, com 4,3 infectados e 140 mortes. Foram 25 dias entre o primeiro e o milésimo caso confirmado. Nos seis dias seguintes foram registrados mais de três mil.
O Exército terminou o mês com uma produção sete vezes maior do remédio para malária habitualmente distribuído aos soldados baseados na Amazônia e em áreas remotas.
Entre abril e junho, entregou ao governo 2,5 milhões de comprimidos. Nesse trimestre, o laboratório do Exército fabricou medicamento suficiente para consumo nas Forças Armadas por mais de uma década, considerada a escala de produção antes da pandemia.
O governo perdeu a bússola na gestão da pandemia e adernou no seu oceano de cloroquina.