Jair Bolsonaro governa pelo tumulto, enquanto faz oposição ao próprio governo. Converteu o Palácio do Planalto numa usina de crises, agora acrescentando o risco de anarquia nos quartéis.
Ano passado, renunciou à sua melhor chance de unir e liderar a sociedade na travessia da catástrofe pandêmica, com uma economia combalida.
Resultado: o governo perdeu o controle da pandemia, ficou sem vacina, adernou num oceano de cloroquina e nos próximos dias o país deve somar meio milhão de mortes, em meio a uma economia devastada (43% dos 176 milhões de brasileiros aptos para trabalhar estão inativos).
É notável que tenha conseguido tudo isso sozinho. Goste-se ou não, Bolsonaro é coerente — faz política com o fígado e, a cada fracasso, decreta vitória e parte para novo confronto.
O conflito com os generais da ativa, cristalizado nesta semana, o deixou isolado na posição de principal fator de ameaça à estabilidade política.
Já lhe custou a perda de uma parte significativa do apoio militar amalgamou ao derrotar o PT de Lula nas urnas em 2018. Era vidro e se quebrou.
Bolsonaro apostou alto numa demonstração de força contra o Alto Comando do Exército. Impôs a impunidade de um general da ativa que delinquiu, atropelando leis, regulamentos, disciplina e hierarquia, ao participar de um comício de campanha do presidente-candidato.
No “coração do Exército” — expressão usada pelo comandante Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira para definir o Estado-Maior, durante reunião na semana passada—, o panorama está sendo descrito assim:
1) O chefe constitucional das Forças Armadas patrocinou graves delitos de um oficial superior — situação esdrúxula sob qualquer aspecto;
2) O Alto Comando poderia desafiá-lo, insistindo na punição do general;
3) Era sabido que, no lance seguinte, Bolsonaro usaria a prerrogativa presidencial de perdão;
4) Isso empurraria o comandante para a demissão, voluntária ou não, promoveria a renovação no Estado-Maior e dos comandos em áreas-chave;
5) Restaria aos generais apenas a alternativa do confronto aberto com o presidente — o equivalente a uma quebra da hierarquia, da disciplina e da ordem constitucional.
Nesse quadro, tomou-se uma decisão política: pagar o preço do desgaste considerável da imagem pública do Exército, mas não correr o risco de deflagrar uma crise institucional.
Essa versão foi apresentada a diplomatas dos Estados Unidos e da União Europeia durante toda a semana.
Foi lembrado um episódio parecido, de seis décadas e meia atrás, quando coronéis tentaram impedir a posse do então eleito presidente Juscelino Kubitscheck e seu vice João Goulart.
Era novembro de 1955 e o deputado Carlos Luz, presidente da Câmara, acabara de assumir o governo em substituição a Café Filho, que adoecera — vice de Getulio Vargas, Café Filho completava o mandato do presidente que se suicidou.
Luz rejeitou a punição dos oficiais golpistas. Preferiu demitir o ministro da Guerra, Henrique Lott.
Na madrugada seguinte, tropas cercaram o Palácio do Catete e quartéis da Polícia Militar do Rio, capital federal. Luz acabou deposto, por impeachment, apenas 72 horas depois de ter assumido a presidência.
Com Bolsonaro, a chefia do Exército escolheu pagar o preço de atender ao pedido presidencial e manter impune o general Eduardo Pazuello, já transferido do quartel-general para uma assessoria no Palácio do Planalto.
Fora da caserna, a decisão assumida pelo general Oliveira foi recebida como capitulação à anarquia bolsonarista, ou ainda como reforço da aliança tácita de 2018, prestes a derivar em algo como um “Centrão verde-oliva”, na trilha da atomização política que consome as polícias militares.
Nos quartéis, porém, prevalece entendimento diferente, o do alinhamento do Alto Comando num “recuo tático” diante do presidente, preservando a hierarquia e a disciplina — que ele decidiu atropelar, como havia feito quando era capitão no governo José Sarney.
Ao introduzir o vírus da anarquia, mudou o padrão de relações com o antigo esteio militar. Desgastou-se, com notável perda de poder real de liderança na cúpula das Forças Armadas.
Como Bolsonaro governa pelo tumulto, a única certeza é de que essa crise apenas começou. E o epílogo parece distante: ainda faltam 14 meses para a eleição presidencial.