Noventa e nove anos de idade, celebrados na última sexta-feira, e ele segue preocupado com o futuro.
Henry Kissinger, nascido alemão e refugiado do nazismo nos Estados Unidos, foi conselheiro de presidentes e secretário de Estado nas décadas de 60 e 70 do século passado.
Ele moldou a reaproximação dos Estados Unidos com a China e a distensão com a Rússia na Guerra Fria. Também avalizou golpes de estado na América do Sul — suas digitais na história de ditaduras militares na Argentina, no Chile e no Uruguai o transformaram em alvo judicial em vários países.
Empresários, ministros e embaixadores de diferentes governos lotaram um auditório na quarta-feira, no Fórum Econômico de Davos, na Suíça, para ouvi-lo em videoconferência no seu escritório em Manhattan.
Descreveu suas apreensões com o futuro, a partir da ruptura da ordem estabelecida desde a IIª Guerra Mundial, com predomínio político, militar e econômico dos Estados Unidos.
É um ponto de virada, de inflexão histórica balizada pela tensão crescente entre os EUA e a China, e realçada pela guerra da Rússia na Ucrânia, cujo resultado vai mudar o formato das relações.
Antevê a necessidade de integração a esse novo sistema internacional dos novos atores em ascensão — cita o Brasil, a Índia e o Irã.
Kissinger, por vezes, fala com a ambiguidade de quem escreve uma ata do Conselho de Política Monetária (Copom).
Entendido que vale a leitura, segue a transcrição dos principais trechos do que ele disse, nesta semana, sobre o perigoso mundo no qual acaba de completar 99 anos de vida:
“(…) Deixe-me descrever os problemas. O mais vívido no momento é a guerra na Ucrânia, e o resultado dessa guerra, tanto no sentido militar quanto político, afetará as relações entre grupos de países. E os resultados de qualquer guerra e do acordo de paz, e a natureza desse acordo de paz, determinarão se os combatentes permanecem adversários permanentes ou se podem ser enquadrados em uma estrutura internacional.
Há cerca de oito anos, quando surgiu a ideia da adesão da Ucrânia à Otan, escrevi um artigo em que dizia que o resultado ideal seria que a Ucrânia pudesse estabelecer-se como um estado neutro, como uma ponte entre a Rússia e a Europa (…)
Acho que essa oportunidade é agora. Ela não existe agora da mesma forma, mas ainda pode ser concebida como um objetivo final.
Na minha opinião, o movimento de negociações e as negociações sobre a paz deve começar nos próximos dois meses para que o desfecho da guerra seja delineado. Pode gerar convulsões e tensões cada vez mais difíceis de superar, particularmente entre a eventual relação da Rússia, Geórgia e Ucrânia com a Europa. Idealmente, a linha divisória deve retornar ao status quo ante (…)
Mas é preciso olhar para o relacionamento da Europa com a Rússia por um período mais longo e de forma separada da liderança existente, cujo status, no entanto, será afetado internamente durante um tempo por seu desempenho nesta etapa.
De um ponto de vista de longo prazo, a Rússia tem sido, há 400 anos, uma parte essencial da Europa, e a política europeia durante esse período foi, fundamentalmente, afetada por sua avaliação europeia do papel da Rússia (…)
A política atual deve levar em conta que é importante desenvolver a restauração desse papel, para que a Rússia não seja forçada a uma aliança permanente com a China.
China e Estados Unidos, sabemos que nos próximos anos eles terão que chegar a alguma definição de como conduzir o relacionamento de longo prazo dos países, depende de suas capacidades estratégicas, mas também de sua interpretação dessas capacidades.
Nos últimos anos, a China e os Estados Unidos evoluíram para um relacionamento único na história de cada lado. É que eles, do ponto de vista do potencial estratégico, são a maior ameaça entre si; na verdade, a única ameaça militar que cada lado deve enfrentar continuamente.
Então o desafio, o período em que estive envolvido na criação dessa relação, em que se pensava que poderia surgir um período de colaboração permanente em que os dois países se tornassem [ininteligível] foi parcialmente comprometido e provavelmente encerrado pelo crescimento da competência estratégica e técnica de cada um (…)
Portanto, ambas as partes devem chegar à convicção de que é essencial relaxar o relacionamento político porque se encontram em uma posição que nunca houve antes: claramente, um conflito com a tecnologia moderna, realizado na ausência de negociações prévias de armas ao controle, para o qual não têm critérios estabelecidos de limitações, será uma catástrofe para a humanidade.
Suas diferenças estão no contexto da política histórica, os governantes têm a obrigação de impedir isso e garantir, no mínimo, consultas permanentes, consultas sérias sobre o assunto, movimentos jurídicos permanentes. E então seria uma evolução disso.
Claro, há muitos períodos inacabados no futuro do mundo.
A ascensão de potências nucleares adicionais, das quais a mais urgente é a ascensão do Irã e as divisões que se seguiram no Oriente Médio.
E como no período diretamente afetado pela questão ucraniana, mas afetado pelo equilíbrio que surgirá, a ascensão de países como Índia e Brasil e outros, terá que ser absorvida para integração num sistema internacional.
Essas me parecem as questões-chave, juntamente com o fato de que o conflito na Ucrânia produziu uma ruptura nos arranjos econômicos que haviam sido feitos no período anterior, de modo que se terá de repensar a definição e o funcionamento de um sistema global.
(…) Negociei o entendimento sobre Taiwan no início da relação EUA-China (…) Entendo que o acordo foi que os Estados Unidos defenderiam o princípio de uma só China (…) E acredito que é essencial que esses princípios sejam mantidos, e que os Estados Unidos não devam, por subterfúgio ou processo gradual, desenvolver algo como uma solução de duas Chinas, e que a China continue a exercer a paciência que exerceu até aqui.
Um confronto direto deve ser evitado, e Taiwan não pode ser o centro das negociações entre a China e os Estados Unidos (…)
A questão de Taiwan não vai desaparecer, mas como sujeito direto de confronto e comportamento antagônico, está fadada a levar a uma situação que pode sofrer mutações no campo militar, que é contra o interesse mundial e contra o interesse de longo prazo da China e dos Estados Unidos (…)
Portanto, é importante para as necessidades gerais do mundo que os Estados Unidos e a China atenuem sua relação de adversários, reconhecendo que, se surgisse uma situação do tipo da Iª Guerra Mundial, se entrassem em conflito, as consequências seriam mais graves do que eram então.”