No post anterior, que trata do ensino médio, já mencionei problemas na BNCC – a Base Nacional Comum Curricular. Ao longo de sua elaboração, sempre fui uma voz crítica do processo adotado pelas diferentes gestões do MEC que conduziram o assunto, bem como dos produtos que foram apresentados à sociedade.
Infelizmente o assunto caminhou mal – e o próximo governo terá diante de si uma escolha de Sofia: implementar algo capenga, com pouca chance de sucesso, ou comprar brigas com as corporações e ONGs que pressionaram para aprovar a BNCC de qualquer maneira, mas criando espaço e negociando tempo para fazer algo de forma adequada.
O tema não é assunto para deliberação pessoal de um Presidente da República, mas é grave o bastante para merecer sua atenção, antes e depois da posse. Mencionarei apenas quatro exemplos de problemas, com base em análises que tive, juntamente com outros pesquisadores, oportunidade de fazer.
De todos os problemas, o mais grave refere-se à própria ideia do que seja um programa de ensino e da forma como deve ser elaborado e apresentado. Em todo o mundo um programa de ensino se caracteriza pela definição do que se deve aprender nas disciplinas mais importantes, e essa definição é apresentada numa estrutura e sequência que viabilizam a sua implementação. Nada disso foi feito – a opção foi por termos pomposos como “direitos de aprendizagem”, “objetos de aprendizagem” e por colocar a interdisciplinariedade no lugar das disciplinas.
Mais infeliz foi o tratamento dado à área da educação infantil. Esta é a área em que houve o maior aumento de conhecimentos científicos nos últimos anos. É também a área em que intervenções adequadas podem ter impactos significativos e duradouros para o resto da vida. Vale citar um parágrafo de importante publicação do Center on the Developing Child para avaliar o tamanho do estrago: “programas para crianças pequenas, pais e cuidadores são mais eficazes quando especificam claramente os objetivos e implementam um currículo ou plano de intervenção adequado para atingir esses objetivos. Os mais bem-sucedidos são guiados por currículos que detalham atividades estimulantes e apropriadas aos vários grupos de idade, focadas em desempenho explicitamente identificados”.
Ao contrário das boas práticas, a BNCC se compraz em apresentar listas de itens elaboradas sem qualquer rigor científico. E, entre esses “direitos”, sequer menciona o direito de a criança concluir a pré-escola com o domínio das habilidades básicas necessárias para se alfabetizar.
O terceiro exemplo situa-se na área da alfabetização. Este é o tema mais estudado pela psicologia cognitiva, cujos achados foram solenemente ignorados pelo MEC e pelo CNE- o Conselho Nacional de Educação. A esse respeito, José Morais, professor emérito da Universidade Livre de Bruxelas, publicou artigo em nosso país, considerando “deplorável” o texto da BNCC sobre alfabetização. Como podemos evoluir, se a ciência e os cientistas não são considerados, e seus pareceres sobre o tema mais estudado pela psicologia cognitiva nos últimos trinta anos são ignorados pelas autoridades responsáveis em estabelecer os rumos da educação?
O quarto exemplo refere-se ao ensino médio, tema já abordado em outro post. Refiro-me aqui apenas ao tratamento dado à ideia de disciplina e interdisciplinaridade – o conceito de disciplinas é simplesmente jogado pelo ralo –, mais uma vez colocando o país em confronto direto com o que se preconiza e se faz nos países com sistemas educacionais mais avançados. Se queremos preparar elites para o ensino superior, é necessário que elas sejam formadas com uma sólida base acadêmica, e, até prova em contrário, essa se assenta num forte domínio de disciplinas específicas, com sua estrutura, sequência e métodos próprios de ensino e aprendizagem.
A BNCC foi iniciada sob o controle e aplauso de determinados grupos e concluída sob a pressão de outros. Mas, em nenhum caso, o trabalho foi feito nos moldes convencionais e usuais em países onde a educação vai bem melhor. E os resultados – apesar do nível elevado de consenso e dos decibéis – deixam tudo a desejar. Ademais, os desdobramentos já iniciados pelo governo federal – como as orientações para a produção de livros e materiais didáticos – repercutem a visão de uma realidade que não existe do lado de lá, nas escolas e salas de aula. Ou seja, a marcha dos insensatos já começou.
Um currículo é o ponto de partida de qualquer reforma educativa. Cabe, portanto, perguntar aos candidatos: na sua gestão, o país irá prosseguir com a BNCC, mesmo sabendo que começamos mal e estamos com um produto de péssima qualidade?
Lançamento do livro “Fraturas na Base – Fragilidades Estruturais na BNCC”.
Acaba de ser lançado e já está disponível para download gratuito (https://www.alfaebeto.org.br/ebook-gratuito-fraturas-na-base-fragilidades-estruturais-da-bncc/) o livro “Fraturas na Base – Fragilidades Estruturais na BNCC”.
Organizada por mim, a publicação traz quatro capítulos onde são analisadas detalhadamente as propostas da BNCC relacionadas à Educação Infantil (João Batista Araujo e Oliveira), à Alfabetização (grupo de especialistas na área, dentre eles o próprio João Batista Araujo e Oliveira), ao Ensino Médio (Claudio de Moura Castro, Cândido Alberto Gomes, João Batista Araujo e Oliveira e Simon Schwartzman) e ao Ensino de Ciências (João Batista Araujo e Oliveira).
O objetivo é permitir uma reflexão sobre a BNCC e expor algumas de suas graves fragilidades, que, na minha visão, comprometem sua possibilidade de êxito. Acrescente-se a isso o propósito de apresentar caminhos para aprimorar o que pode ser aprimorado e refazer o que precisa ser refeito.
Esperamos que esse documento seja lido, aproveitado e oportunamente divulgado como mais uma contribuição ao debate sobre os temas essenciais da Educação no país.