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Dias Lopes

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Dobradinha: amor e ódio

Muitos brasileiros saboreiam com prazer, outros abominam. Impossível ser indiferente a esse prato que aprendemos a fazer com os portugueses

Por J.A. Dias Lopes 24 jun 2019, 15h13
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  • Muitos brasileiros saboreiam a dobradinha com prazer, outros a abominam. Impossível ser indiferente a esse prato que aprendemos a fazer com os portugueses

    Nem o alho, o coentro e o quiabo, os miolos, a língua e o fígado do boi, o pé e a asa da galinha, dividem tanto as pessoas à mesa. Impossível ficar indiferente diante da dobradinha, dobrada, tripa, bucho ou mondongo, um ensopado ou sopa grossa à base do estômago do boi. Muitos a adoram, outros a abominam. É uma das mais antigas receitas brasileiras, tradicional em várias regiões, que o país aprendeu a preparar com os colonizadores portugueses.

    Eles a introduziram na Terra de Santa Cruz no início do século XVI, logo que desembarcaram em Porto Seguro, agora Santa Cruz Cabrália, na Bahia. Comida de estilo medieval, apreciada até hoje por vários povos europeus, estreou na cozinha dos desfavorecidos que, por falta de recursos e necessidade alimentar, aproveitavam tudo dos ruminantes abatidos, notadamente do boi, exceto o impalpável berro.

    Na receita brasileira, o ingrediente dominante é o rúmen ou pança, o maior dos quatro estômagos do boi, mas também pode ser usado o omaso ou folhoso, terceiro deles. Ainda se costuma acrescentar costelinha de porco, embutidos, às vezes toucinho defumado, charque e necessariamente feijão branco. O resultado é um prato que, apesar de continuar a ser considerado de pobre, proporciona riqueza nutricional, sem contar o apetitoso sabor (para quem gosta, é claro).

    As pessoas que detestam dobradinha, muitas vezes não toleram as vísceras dos animais – além do estômago, o fígado, o rim e a língua – e costumam reclamar do cheiro forte do prato, sobretudo durante o cozimento. Trata-se, porém, de problema solucionável. Basta que a dobradinha, antes de ir ao fogo, seja esfregada com sal, limão, vinagre e depois lavada em sucessivas águas, até ficar esbranquiçada, e finalmente aferventada com bicarbonato de sódio. Ao ir à mesa, terá o aroma e o sabor da sua combinação de ingredientes.

    Nos países de língua portuguesa, a mais famosa dobradinha recebeu o nome de tripas à moda do Porto. Os franceses chamam a sua principal variante de tripes à la mode de Caen, os italianos fazem trippa alla romana, alla bolognese, alla fiorentina, alla milanese ou busecca, os espanhóis se orgulham dos callos a la madrileña. O gentílico tripeiro, pelo qual são conhecidos os habitantes do Porto, deriva justamente do apreço ao prato, que saboreiam com orgulho cívico.

    Segundo a tradição, em 1415 o Infante D. Henrique, o Nevegador, personagem literalmente de proa do início da era das descobertas, viajou até a cidade que deu o nome a Portugal. Foi inspecionar os trabalhos no estaleiro onde eram construídas as embarcações para a tomada de Ceuta, na margem africana da desembocadura oriental do estreito de Gibraltar. Dominada pelos mouros ou sarracenos, adeptos do islamismo, era uma cidadela estratégica para a navegação no norte da África. Sua conquista iniciou grandiosa expansão colonial lusitana.

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    Aproveitando a oportunidade, o Infante D. Henrique pediu à população para doar mantimentos que abastecessem a tropa a ser comandada por seu pai, o rei D. João I, primeiro soberano da Casa de Avis. Os habitantes do Porto responderam positivamente, fornecendo tudo o que podiam, inclusive carne bovina, que limparam, salgaram e acondicionaram nas embarcações. Sobraram as vísceras dos animais.

    Com elas a população local inventou comidas para matar a fome, entre as quais um ensopado ou sopa grossa logo batizada de tripas à moda do Porto. Há outros relatos em torno da criação do prato, com detalhes semelhantes, localizados em momentos históricos diferentes, porém o que envolve o Infante D. Henrique é o mais difundido.

    A Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP) e a Confraria Gastronômica das Tripas à Moda do Porto avalizam essa versão. No dia 14 de maio de 2015, deram juntas uma festa de arromba, para comemorar os 600 anos da invenção da receita. Distribuíram à população da cidade, no almoço, 1.200 pratos de comida. Que manjar havia em cada um deles? Tripas à moda do Porto, é óbvio.

    Lisboa também tem as suas tripas, mas sob o nome de dobrada. A receita é ligeiramente diferente. Na capital portuguesa, vão à panela estômago bovino, presunto, chouriço e feijão branco. No Porto, estômago bovino, mocotó, galinha, toucinho, salpicão, chouriço e feijão branco. Seguidamente, porém, as duas receitas são confundidas.

    Desse pecado venial não escapou o genial poeta Fernando Pessoa, em verso antológico escrito provavelmente no Restaurante Ferro de Engomar, ainda hoje funcionando no Benfica, em Lisboa. Intitulou-o “Dobrada à Moda do Porto”, um prato que, como sabemos, não existe com esse nome; e o assinou como Álvaro de Campos, seu heterônimo (nome imaginário, com identidade e personalidade diferentes do autor), um sujeito que valoriza a modernidade e ao mesmo tempo se revela pessimista.

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    “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,/ Serviram-me o amor como dobrada fria./ Disse delicadamente ao missionário da cozinha/Que a preferia quente,/Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria./Impacientaram-se comigo./Nunca se pode ter razão, nem num restaurante./Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,/E vim passear para toda a rua./ Quem sabe o que isto quer dizer?/Eu não sei, e foi comigo…”

    Fernando Pessoa
    Fernando Pessoa: poema de amor melancólico que mistura a dobrada de Lisboa com as tripas à moda do Porto (Domínio Público/Wikimedia Commons)

    Errando na gastronomia, pois no Porto não existe dobrada, mas tripas, Fernando Pessoa escreveu um poema primoroso, que se presta a múltiplas interpretações. Ele utilizou a dobrada como metáfora do amor falhado (como dizem os portugueses). À primeira vista, os versos parecem irônicos, até divertidos, mas logo se nota estarem minados pela mais profunda melancolia. Quando quente, a dobradinha simboliza o amor realizado. Todo o poema gira em torno da capacidade de amar. Ficam implícitas divagações filosóficas. Como alguém pode oferecer um amor que está frio? Em vídeo acessadíssimo no YouTube, Chico Buarque de Hollanda aparece lendo o poema “Dobrada à Moda do Porto”:

    Quanto à dobradinha brasileira, integra a sequência de pratos semanais, estabelecida como regra alimentar nas residências de São Paulo da virada do século IX para XX, atualmente seguida em restaurantes populares da cidade. Segunda-feira é dia de virado à paulista ou galinha com polenta; terça-feira tem dobradinha, ao lado de rabada e bife rolê; quarta-feira, feijoada ou frango assado; quinta-feira, lasagna ou spaghetti com frango; sexta-feira é a vez do pernil, bacalhau ou peixe com purê; sábado reina a feijoada.

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    Por que dobradinha na terça-feira? Uma hipótese é o fato de, no passado, o abate dos bois ocorrer quase sempre na véspera, ou seja, na segunda-feira. Também há um motivo provável para, no Porto, as tripas serem saboreadas de preferência na quinta-feira. Talvez porque era o dia no qual as fressureiras (vendedoras das vísceras mais grossas) pagavam a licença semanal à associação de classe. É incrível como um prato mergulhado em nossa melhor tradição culinária pode atiçar tantas reações de amor e ódio.

    DOBRADINHA

    RENDE 10 PORÇÕES

    INGREDIENTES

    .600g de costelinhas de porco salgadas

    .700g de dobradinha (bucho bovino)

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    .Suco de 1 limão

    .700g de feijão branco

    .2 folhas de louro

    .2 paios defumados cortados em rodelas

    .3 linguiças defumadas cortadas em rodelas

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    .2 cenouras cortadas em rodelas

    .5 dentes de alho picados

    . 4 colheres (sopa) de óleo (ou banha de porco)

    .1 cebola grande cortada em cubos

    .1 pimentão verde cortado em cubos

    .2 tomates (sem pele e sem sementes) picados

    .1 colher (café) de colorau

    .Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto (se necessário)

    FINALIZAÇÃO

    .5 ovos duros cozidos cortados ao meio

    .Cebolinha verde picada para salpicar

    PREPARO

    .1 Na véspera, coloque de molho em água, na geladeira, as costelinhas de porco, trocando a água uma vez.

    2. Limpe a dobradinha, lavando-a em água corrente e em seguida afervente-a em um pouco de água, junto com o suco do limão. Retire-a, lave-a mais uma vez, raspe a superfície com uma faca e corte-a em tirinhas.

    3. Corte as costelinhas pelas ripas e cozinhe-as na panela de pressão, em 2,5 litros de água, junto com a dobradinha, por 20 minutos.

    4. Após, transfira tudo para uma panela maior, junte o feijão branco, o louro, o paio e a linguiça. Cozinhe lentamente, com a panela aberta, até o feijão ficar macio, mas com os grãos inteiros. Junte as cenouras e, se necessário, coloque mais água.

    5. Separadamente, doure o alho no óleo e, em seguida, incorpore a cebola, o pimentão, o tomate e o colorau. Despeje esse refogado na panela sobre a dobradinha e deixe cozinhar até que o caldo engrosse e os temperos se misturem. Confira o sal e a pimenta-do-reino.

    6. Sirva em cumbucas e por cima distribua as rodelas de ovo e a cebolinha-verde

    Receita de Mara Salles, chef de cozinha em São Paulo – SP

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