Roberto Pompeu de Toledo (publicado na edição impressa de VEJA)
A queda do Supremo Tribunal Federal a seu maior nível de desprestígio é um alento caído do céu às hostes bolsonaristas: estes os resultados das operações que, em nome da Corte, levaram nos últimos dias à censura da revista virtual Crusoé e à repressão de certos protagonistas da guerrilha anti-STF nas redes sociais. Ambas as medidas realizaram-se no quadro das investigações ordenadas pelo presidente do colegiado, ministro Dias Toffoli, e levadas a cabo pelo ministro Alexandre de Moraes, para coibir manifestações “falsas, caluniosas, difamantes e injuriantes”, e tiveram resultados tão opostos ao pretendido que incumbe agora ao STF encontrar saída honrosa para a embrulhada. A Bolsonaro, aos Bolsonaros e ao bolsonarismo sobrou a sensação de que podem até prescindir do cabo e do soldado. O Supremo arrisca desarticular-se sozinho.
Duas camadas de conflitos superpostos contribuíram para esse resultado. A primeira é a guerra intestina entre os integrantes da Corte, expressa pelo placar de 6 a 5 nas disputas em plenário quando o assunto tem a ver com a Operação Lava-Jato. No último 6 a 5 a maioria decidiu, em março, mandar para a Justiça Eleitoral os crimes conexos ao caixa dois, como corrupção. Considerada favorável aos réus, a decisão acirrou os ultraexcitados ânimos nas redes e levou o presidente Toffoli a abrir investigação a respeito, nomeando Moraes para conduzi-la. A segunda camada é o conflito latente entre o tribunal e os vencedores das eleições, no Executivo e no Legislativo. Da proposta de Bolsonaro, ainda na campanha, de aumentar o número de ministros à ameaça no Congresso de uma CPI dos tribunais superiores, a animosidade veio num crescendo. Prova de que o STF sentiu o clima foi a decisão de adiar o julgamento sobre a legalidade da prisão dos condenados em segunda instância. O 6 a 5, desta vez, tendia para a ilegalidade. E daí — Lula solto? No ambiente que hoje convulsiona o país? O julgamento será remarcado, pode-se apostar, para as calendas gregas.
A investigação encomendada por Toffoli foi um gesto de bravura apoiado em pés de barro. Juristas acusaram em peso o disparate de, ao encetá-la, o STF arvorar-se, a um tempo, em investigador, acusador e juiz. Para recorrer a palavra do gosto dos magistrados, caiu-se numa situação teratológica, do ponto de vista das leis. “Monstruosa”. Como disse a professora Eloísa Machado de Almeida, da FGV-SP, ao site Uol, “o direito e as ferramentas do direito explicam muito pouco dessa realidade”. Acresce que a nomeação de Moraes foi decisão pessoal de Toffoli, não fruto do necessário sorteio entre os ministros. Se o direito é insuficiente para explicar tais anomalias, só recorrendo à política — a interna, do STF, e a do mundo exterior.
A censura à revista, para acrescentar o toque de interesse pessoal que faltava ao enredo, se deu por causa da notícia de uma menção a Dias Toffoli (sem acusá-lo de nada) nas delações da Odebrecht. Os Bolsonaros, logo eles, que tão conflituosa relação vêm mantendo com a imprensa, protestaram. “Minha posição sempre será favorável à liberdade de expressão, direito legítimo e inviolável”, tuitou o presidente Jair. “A censura à Crusoé apenas contribui para reduzir o já baixo índice de credibilidade do STF perante a sociedade”, manifestou-se, com explicitude, o filho Eduardo. O presidente mostrou a mesma pronta adesão à boa causa que esteve ausente no caso do assassinato do músico Evaldo Rosa por soldados do Exército.
O Supremo enfrenta aquilo que nas mesas de bilhar se chama sinuca de bico. Se a investigação criada por Toffoli vier a ser apreciada pelo plenário, o presidente correrá o risco de ser desautorizado. Do lado bolsonarista, o enfraquecimento do STF inscreve-se em propósitos que vão além do episódio dos últimos dias. Recorde-se das palavras do presidente em Washington: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa, para depois começar a fazer”. O inimigo do bolsonarismo puro, o autêntico, o de raiz, vai além da esquerda; ou, por outra, considera “esquerda” algo que ultrapassa o entendimento convencional. Para o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, banqueiros são de esquerda. O jovem assessor da Presidência Filipe Martins, fiel intérprete do guru Olavo de Carvalho, chama de “anti-establishment” a ala a que pertence. O bolsonarismo de raiz chama de “esquerda”, ou de “establishment”, o que, atual ou potencialmente, se interpõe em seu caminho. O STF é com certeza do establishment. É teratológico, mas na cabeça de alguns bolsonaristas periga ser também de esquerda.