Publicado na edição impressa de VEJA
AUGUSTO NUNES
Três anos e quatro meses depois de aberta por Hugo Chávez com a exumação de Simón Bolívar, a temporada de caça ao veneno chegou à etapa brasileira no interior gaúcho. Em sossego desde dezembro de 1976 no cemitério de São Borja, cidade onde nasceu e até agora jazia em paz, o presidente João Goulart foi transformado na bola da vez pelos praticantes da política dos mortos. Eles vivem à procura de pretextos para algum acerto de contas com o passado que permita reescrever a história com a mão esquerda. Os organizadores do resgate da última quarta-feira, por exemplo, sonham provar que Jango sucumbiu não ao infarto mais que previsível, mas a uma florentina troca de remédios tramada por envenenadores a serviço das ditaduras que infestavam o subcontinente. Aconselhados pelo que lhes resta de juízo, os celebrantes do rito fúnebre no Rio Grande do Sul substituíram por um velório pelo avesso a carnavalesca recepção armada por Hugo Chávez, em julho de 2010, para homenagear El Libertador à saída do seu mausoléu.
Em julho de 2010, a reencarnação de Bolívar resolveu desenterrar o original para descobrir que o herói da independência morreu envenenado com arsênico pelos pérfidos colonialistas. Transmitido ao vivo pela TV e narrado pelo ministro do Interior, o espetáculo da morbidez chegou ao clímax quando Chávez confiscou o microfone para advertir os espectadores: “Tirem as crianças da sala, que a cena que vamos exibir será forte”. Dado o alerta, a câmera exibiu em close a ossada gloriosa. Na madrugada, ainda grávido de emoção, o chefe da revolução bolivariana decidiu ressuscitar o exumado pelo Twitter: “Levanta-te, Simón, porque não é hora de morrer!”, ordenou. Bolívar só foi devolvido ao mausoléu depois de sete dias sem sair da horizontal — e sem saber do resultado dos exames: para decepção dos profanadores de túmulos com bons índices de popularidade, ele morreu de tuberculose.
Nesta quarta-feira, a exumação de Goulart foi feita sem câmeras de TV nem jornalistas por perto. Para frustração dos turistas que lotaram a mirrada rede hoteleira de São Borja, só tiveram acesso ao cemitério — além da brigada internacional de especialistas formada por brasileiros, uruguaios, argentinos e cubanos — alguns parentes, uns poucos amigos de fé e três celebridades federais: o governador Tarso Genro, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e a inevitável Maria do Rosário. Secretária dos Direitos Humanos (com status de ministra), a combatente do PT gaúcho encarregou-se da retórica hiperbólica. “Exumar Jango é exumar a ditadura”, informou. Como se vinte anos coubessem num único personagem ou num caixão. Como se merecesse ser levada a sério uma frase que pode acabar inocentando o regime militar de todos os homicídios que lhe são atribuídos. Basta ficar comprovado que Jango foi abatido pelo coração arruinado por falta de cuidados e excessos de sobra.
Essa hipótese é mais que provável, previnem os dois casos registrados em território chileno entre a exumação de Bolívar e a de Jango. Em maio de 2011, Salvador Allende foi retirado do túmulo para eliminar a suspeita que afligia os derrotados pelo golpe militar chefiado 38 anos antes por Augusto Pinochet: o presidente cometera suicídio ou fora executado depois da invasão do palácio em que estava entrincheirado? Foi suicídio, reiteraram os exames. Em abril de 2013, chegou a vez do poeta Pablo Neruda. Neste 8 de novembro, uma junta de onze médicos chilenos e estrangeiros concluiu que Neruda morreu há quarenta anos em decorrência do câncer na próstata que precipitara a internação num hospital. Mas não vai descansar por muito tempo. Inconformado com o resultado adverso, o juiz Mário Carroza promete exigir uma segunda bateria de testes. O desvendamento de um assassinato político justifica qualquer gastança, ensinou Maria do Rosário aos jornalistas interessados nas despesas exigidas pela exumação de João Goulart, incluídos exames e traslados. “Custa menos do que uma ditadura”, resumiu.
E exumar é bem mais barato que embalsamar, poderia ter acrescentado a ministra. Embalsamar é verbo que não combina com os humores pendulares do subcontinente, como atestam a saga de Evita Perón e o fiasco produzido por Nicolás Maduro quando tentou transformar Hugo Chávez na versão cucaracha de Lenin (veja o quadro ao lado). Bem menos complicada é a exumação. Não tem contraindicações, nem provoca efeitos colaterais. Se der em nada, o exumado volta à tumba sem perdas nem danos. Se funcionar, qualquer despesa parece irrisória. Para quem confunde urna funerária com urna eleitoral, morte morrida é de pouca serventia. Muito mais proveitosa é morte matada. Essa não tem preço.
A simulação da eternidade
BRANCA NUNES
Quando se decide embalsamar um corpo, a pressa é amiga da perfeição. Em Eva Perón o processo começou antes mesmo da morte, quando o anatomista espanhol Pedro Ara foi convocado pelo presidente argentino Juan Perón para atender ao último desejo da mulher agonizante. “Não deixem que me esqueçam”, pedira Evita ao marido. Nicolás Maduro ignorou esse detalhe ao tentar transformar Hugo Chávez na Eva Perón dos venezuelanos. Depois de um cortejo fúnebre de sete horas e um velório que durou dez dias, a integridade dos órgãos e do sistema vascular estava comprometida.
Como numa diálise, técnica aplicada a quem sofre de insuficiência renal, no embalsamamento o sangue é gradativamente trocado — mas não por um sangue mais puro, e sim por uma substância à base de formol e outros aldeídos. “O efeito bactericida do formol ajuda a criar um ambiente estéril”, explica o professor Luiz Fernando Ferraz da Silva, do departamento de patologia da Faculdade de Medicina da USP. “O objetivo é cessar a degradação e a desidratação das células.”
O ideal é que o embalsamamento comece em até 24 horas após a morte. O corpo de Evita chegou às mãos de Ara em 35 minutos. “Ela ainda estava morna e flexível, mas os pés já se tornavam azulados e o nariz se abatia como um animal exausto”, descreve Tomás Eloy Martínez no livro Santa Evita. Lavado o corpo, uma veia ou artéria é dissecada. Em seguida, coloca-se uma cânula por onde será introduzida a substância. Para evitar a falta de formol em alguma área, o que desencadearia o processo de gangrena, o líquido é injetado em outras partes do organismo.
Só depois de assegurado esse ambiente estéril, à prova de bactérias, passa-se à reconstrução externa. As partes que continuarão visíveis são envoltas em vaselina. Uma maquiagem especial reproduz o tom de pele original e simula a coloração que só seria preservada caso o sangue seguisse circulando. Embora fi que aparentemente perfeito (“A própria mãe de Evita desmaiara numa das visitas ao corpo da filha ao ter a impressão de ouvi-la respirar”, escreve Martínez), o tecido de um corpo embalsamado é mais frágil, mais duro e mais ressecado do que o normal.
Continua após a publicidadePara impedir a desidratação ou a corrosão provocada por bactérias, o corpo, instalado numa caixa de chumbo ou acrílico minuciosamente vedada, precisa ser mantido num local com temperatura e umidade controladas. Sequestrado em 1955 por militares, o corpo de Evita media 1,65 metro. Depois de quase duas décadas zanzando longe do país natal, a desidratação foi inevitável. Quando retornou à Argentina, cabia numa caixa de bonecas.