Depois de quase um ano, o país volta a acompanhar uma votação no Congresso para decidir o destino do presidente da República. No caso de Dilma Rousseff, o processo de impeachment, por crime de responsabilidade, por desmandos fiscais, foi encerrado em 16 de agosto, no Senado, com o impedimento da presidente petista. Hoje, seu então vice, Michel Temer, enfrenta outro tipo de escrutínio: um pedido da Procuradoria-Geral da República para que a Casa permita ao Supremo Tribunal deliberar sobre se o processa, como deseja a PGR, por corrupção passiva.
Duas decisões sobre o futuro de um presidente em tão pouco tempo, longe de diagnosticarem alguma avaria grave nas instituições, atestam, ao contrário, o saudável funcionamento delas. Têm resistido, inclusive, a propostas heterodoxas, contra a Constituição, como a antecipação das eleições de 2018, enquanto sinalizam que as únicas saídas para a crise são as estabelecidas na Carta — a Câmara nega o pedido da PGR, ou o aceita; neste caso, fica-se à espera de os 11 ministros do Supremo abrirem ou não processo contra Temer.
Caso abram, o presidente será afastado por até 180 dias, assumindo Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Se for condenado, perde o cargo, e Maia convoca eleição indireta para 30 dias depois. Absolvido ou caso nada aconteça em seis meses, Michel Temer volta ao Planalto. Não há o que discutir.
Também não existe dúvida sobre qual o melhor voto a ser dado na sessão que decidirá o destino do pedido da PGR: é permitir que o Supremo julgue Michel Temer. Talvez sequer ocorra esta sessão. Pode ser que pelo fato de o Planalto, por não ter força, assim como a oposição, para garantir o quórum mínimo de 342 deputados e votar o relatório em favor de Temer, do deputado tucano Paulo Abi-Ackel (MG), fique tudo pendente, e o governo assuma o discurso de que vale este relatório.
Assim, tudo continuará como está. Instável, inseguro, até outubro de 2018, mês da eleição. Pode-se, ainda, aguardar nova acusação da PGR, por outros crimes — obstrução da Justiça ou participação em organização criminosa. Nessa hipótese, repete-se o rito.
Hoje ou quando for a votação, e mesmo que ela não ocorra, estão em confronto, nas acusações a Michel Temer e na sua defesa, duas concepções do que é exercitar a política com ética. Numa, tudo pode ser relevado, se o governo tem propósitos corretos na economia, por exemplo. Na outra, valem a lei e a ética, independentemente de ideologias e partidos.
O vice-presidente recebeu de fato uma herança maldita, devido à decisão de Dilma, sob as bênçãos de Lula e PT, de aproveitar a crise mundial deflagrada em 2008/9 para aprofundar o “novo marco macroeconômico”, no velho modelo nacional-populista de intervenção do Estado na economia, inspirado nos pensamentos fracassados da esquerda latino-americana do pós-guerra. Sabe-se o que aconteceu: recessão profunda, histórica, 14 milhões de desempregados e inflação. Os juros precisaram ficar em patamares ainda mais elevados, o que, em um primeiro momento, agrava a recessão, um efeito colateral inevitável. Mas, com o passar do tempo, o ajuste avançou, embora tenha estancado com a crise política deflagrada pela conversa nada republicana do presidente com o empresário Joesley Batista, origem do pedido de investigação da PGR, divulgado pelo GLOBO.
Temer assumiu com uma competente equipe econômica e estruturou uma correta agenda de reformas, em que se destacam as da Previdência e a trabalhista. Em função disso, defende-se a permanência dele no Planalto, e faz-se vista grossa ao que aconteceu naquela noite de março nos porões do Palácio do Jaburu, em que o presidente recebeu o empresário do grupo JBS, Joesley Batista, este com um gravador no bolso.
Repete-se o truque do PT, de justificar a participação de estrelas do partido na roubalheira do mensalão e petrolão pela causa do combate à pobreza. É um erro: nada pode atenuar o crime de corrupção ou qualquer outro. Ter este comportamento é praticar a política miúda. Significa não aproveitar o momento histórico do enfrentamento que organismos de Estado fazem dos desvios do dinheiro do contribuinte no âmbito do Executivo e Legislativo, para que, enfim, se dê um choque forte de ética na política e seja estabelecido para valer o princípio republicano de que a lei vale de fato para todos.
Confirmada a autenticidade do áudio por peritos da Polícia Federal, resta entender o sentido claro do entrecortado diálogo entre Temer e Joesley, e complementá-lo com o vídeo de Rodrigo Loures — que agendara aquela visita de Joesley ao presidente —, correndo em uma rua de São Paulo com uma maleta em que estavam R$ 500 mil. Era propina acertada pelo empresário com o deputado suplente do PMDB paranaense, que Temer indicara a Joesley para resolver “tudo”, inclusive uma pendência com a Petrobras no Cade, em torno do preço do gás fornecido pela estatal a uma termelétrica do JBS. Os R$ 500 mil eram uma parcela pelo serviço prestado pelo representante de Temer, acusa a PGR. O conjunto desta obra é complementado por depoimentos do empresário e de um diretor da JBS que participou dos acertos com Loures, Ricardo Saud.
Ora, o que o Ministério Público Federal entende sobre o comportamento do ex-presidente Lula nas relações promíscuas com empreiteiras precisa valer para todos. Não pode existir uma metodologia de interpretação de fatos entre procuradores e juízes que só valham para o PT. Evidências e indícios são provas válidas para que se abram processos. Isso tem acontecido com vários políticos, Lula um deles. Inconcebível é fazer de conta que nada houve de pelo menos estranho no relacionamento entre Temer, JBS, Joesley, Loures e outros.
Lula está para a OAS no caso do tríplex do Guarujá como Michel Temer para a JBS no assunto do gás da termelétrica. Sem falar na triangulação com Joesley, Eduardo Cunha e Lúcio Funaro, um relacionamento também suspeito, mas ainda na dependência de delações e investigações. Assim como as instituições prestam conta à sociedade no desmantelamento do petrolão, em que se lambuzaram PT, PMDB e PP, a nação precisa ter inúmeras dúvidas respondidas sobre a atuação do presidente Michel Temer nesses meandros dos subterrâneos das finanças ocultas da política. Também por isso, ele precisa ser processado. E nisso as próprias reformas serão ajudadas. Um presidente fraco, sob suspeição, é que não conseguirá tocá-las.