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Augusto Nunes

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Especial VEJA: 50 anos depois

Publicado na edição impressa de VEJA Às 18 horas do dia 31 de março de 1964 o presidente João Goulart conversava com o general Peri Bevilacqua, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. O encontro era no Palácio Laranjeiras, rebuscada joia em estilo renascentista francês plantada num tapete de Mata Atlântica no coração do Rio de […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 04h08 - Publicado em 31 mar 2014, 14h18
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    Às 18 horas do dia 31 de março de 1964 o presidente João Goulart conversava com o general Peri Bevilacqua, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. O encontro era no Palácio Laranjeiras, rebuscada joia em estilo renascentista francês plantada num tapete de Mata Atlântica no coração do Rio de Janeiro, e o tema era o mesmo tratado pelo visitante anterior, o senador e ex-presidente Juscelino Kubitschek: ainda dava tempo de salvar o governo. Se rompesse com a ala mais radical, que queria mudar as regras do jogo a poder de greves e insubordinações na base militar, havia uma chance de arrastar de volta as forças já desencadeadas. Na verdade, isso não era mais possível, e o bilhete que o presidente recebeu, no meio da conversa, de seu ministro da Justiça, Abelardo Jurema, era a confirmação definitiva. “General, o general Mourão revoltou a 4a Região Militar em Minas e exige a minha renúncia. O senhor acha isto direito?”, perguntou a Bevilacqua.

    Podia não ser direito, mas era a realidade. E não era só o general Olympio Mourão, embora a iniciativa em campo, e até uma certa precipitação, tivesse sido dele. Estranhamente calmo, até passivo demais para os que o cercavam, Jango já estava deposto na prática, e tomaria uma decisão errada atrás da outra, como um personagem de tragédia grega nos trópicos, impotente para mudar seu destino. Dois generais que não se davam mas viriam a se suceder na Presidência, Humberto de Alencar Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, disparavam telefonemas articulando a conspiração entre homens cheios de estrelas nos ombros, dúvidas operacionais na cabeça e uma única e inescapável certeza: do jeito que estava não iria continuar.

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    Praticamente no mesmo horário, em Goiânia, aonde havia ido para dar uma palestra, o dirigente comunista Jacob Gorender, posteriormente um notável historiador, descobriu na barbearia do hotel onde se hospedava o motivo pelo qual não chegavam os jornais do Rio: simplesmente não havia aviões decolando do Rio. “Arrumei a maleta, assinei as faturas na portaria e, ao botar os pés na rua, começou para mim um período de seis anos de clandestinidade.” Não só a vida de Gorender entrava num labirinto. Jango, Bevilacqua, JK, Jurema, Mourão, Castello, Costa e Silva e todas as demais figuras políticas e militares envolvidas nos dois lados do estranho golpe em que nenhum soldado disparou contra outro com voz de comando diferente seriam arrastados pelo incontrolável turbilhão histórico. Convencidos de que deviam interferir para salvar as Forças Armadas e o Brasil, saindo de cena em seguida, pois não eram generais de republiquetas centro-americanas ─ convicção partilhada pelo líder do Partido Comunista, Luiz Carlos Prestes ─, os chefes militares acabaram inaugurando um período de vinte anos de ditadura em que o próprio regime sofreu a corrosão moral autoinfligida das perseguições políticas e dos métodos abomináveis de combate a inimigos ideológicos erguidos em armas.

    Com todos os seus interlocutores nos dias dramáticos que levaram à sua deposição, Jango manteve a mesma atitude. Aos cabeças quentes que pediam poder de fogo para resistir, dizia que não poria armas nas mãos de quem não sabia atirar ─ ele mesmo, criado na vida do campo no Rio Grande do Sul, era bom de pontaria e só perdia para a mulher, Maria Thereza. A uma proposta do ministro da Aeronáutica, Anísio Botelho, de jogar napalm nos recrutas do general Olympio Mourão, parados no meio do caminho entre Minas e o Rio, respondeu: “Vai queimar gente? De jeito nenhum”. O único avião de guerra que levantou voo para defender o governo jogou panfletos sobre Juiz de Fora. Imutável também foi o presidente com os cabeças frias, os que apelavam para romper com as várias alas à esquerda que puxavam o país para a ruptura institucional. Provavelmente o mais importante deles tenha sido o general Amaury Kruel, o comandante do II Exército, sediado em São Paulo. Eram amigos de longa data, Kruel havia batizado seu filho mais velho, João Vicente, e Jango contava, irrealisticamente, atraí-lo para o lado da salvação de seu governo. A última conversa entre os dois foi às 11h30 da noite de 31 de março. Kruel pediu, de novo, que o presidente mudasse de rumo. “Nunca tive apoio nem das forças políticas nem das Forças Armadas durante o meu governo, só tive dificuldades. Se agora, nesta hora cruciante, eu me livro dos que me cercam, equivale a um suicídio”, repetiu Jango. Meia hora depois, Kruel, que já estava com a tropa meticulosamente distribuída, proclamou: “O II Exército, sob meu comando, coeso e disciplinado, unido em torno de seu chefe, acaba de assumir atitude de grave responsabilidade com o objetivo de salvar a pátria em perigo, livrando-a do jugo vermelho”. No dia seguinte, 1º de abril, Jango partiu para o périplo final: foi do Rio para Brasília, de Brasília para Porto Alegre, de Porto Alegre para São Borja, dali para uma fazenda mais remota e, por fim, para o exílio no Uruguai.

    O golpe que agora completa meio século começou a se tornar possível no dia 25 de agosto de 1961, quando o errático e até hoje enigmático Jânio Quadros abriu mão dos 5,6 milhões de votos que o haviam levado à Presidência do Brasil. Em lugar do homem dinâmico e cheio de ideias novas que Jânio parecia ser, o país se viu às voltas com Jango, beneficiado e ao mesmo tempo sobrecarregado pela herança getulista que já havia redundado num beco histórico sem saída. Simpático e com fama de ser uma espécie de playboy dos pampas, Jango funcionava bem na máquina partidária, mas não tinha o carisma nem o autocontrole de Getúlio Vargas. O ambiente tóxico era alimentado por um conjunto de correntes políticas irreconciliáveis, representadas em seu estado de furor primal de um lado por Leonel Brizola, o incendiário cunhado do presidente, e de outro pelo lança-chamas humano chamado Carlos Lacerda, o governador da Guanabara. As forças ideológicas conflitantes avançaram para a mais perigosa ecologia política, quando cada lado se considera existencialmente ameaçado pelo outro. O filme O Encouraçado Potemkin era projetado no Ministério da Marinha como aula de instrução política para encorajar a rebelião entre os próprios marinheiros, e mulheres com terços na mão haviam impedido Brizola de falar num comício em Belo Horizonte. Uma análise feita na época assim retratava a situação: “Áreas enormes da população, sobretudo da classe média brasileira, estão sendo submetidas a um processo de hipnose que arrasta as camadas da população a um anticomunismo irracional e fanatizado. Dois grandes males põem em risco a paz e a liberdade de nossa pátria na conjuntura atual. São eles a inflação financeira e o radicalismo político. O medo de perder gera a mesma fúria agressiva que a cobiça de ganhar. Em breve, se não houver possibilidade de uma solução equilibrada, o destino da maioria dos brasileiros estará à mercê dos grupos extremistas minoritários, que, por um misto de ambição e medo, se atiram à ação direta, para a revolução ou para o golpe de Estado”.

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    O diagnóstico não poderia ser mais autorizado: foi feito por José de Magalhães Pinto, banqueiro, governador de Minas Gerais e o mais influente articulador político do golpe de 1964. Teria sido possível outro desfecho? Aos historiadores, esse tipo de especulação é proibido. Os leigos sempre podem levantar a questão. O general Peri Bevilacqua, aquele que no começo desta reportagem aparece apelando a Jango, acreditava que sim. Bastava Goulart ter lhe dito: “General, eu lhe peço que viaje imediatamente para Minas Gerais, vá se entender com seu amigo Mourão e convide para ir em sua companhia o senador Juscelino”. JK e Mourão eram amigos da infância passada em Diamantina. “Em menos de 24 horas, teria sido encontrada uma solução política para aquela gravíssima crise. Teria sido evitado que se quebrassem os padrões da legalidade, e a experiência mostra que, uma vez que esses padrões são quebrados, é muito difícil, depois, voltar ao regime ideal de respeito meticuloso à lei, ao regime de fidelidade à Constituição e às leis do país.” Sensatas palavras de um homem que viveu tempos insanos. Flagrantes dos acontecimentos de cinquenta anos atrás são mostrados, a seguir, através dos personagens que estavam nos lugares mais decisivos no dia 31 de março de 1964.

    Colaboradores: André Petry, Augusto Nunes, Carlos Graieb, Diogo Schelp, Duda Teixeira, Eurípedes Alcântara, Fábio Altman, Giuliano Guandalini, Jerônimo Teixeira, Juliana Linhares, Leslie Lestão, Otávio Cabral, Pedro Dias, Rinaldo Gama, Thaís Oyama e Vilma Gryzinski.

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