Este blog segue com a ideia original, a de buscar uma história de 100 anos atrás e costurá-la com um evento ou uma prova de agora. A cada postagem uma piscadela para ontem e outra para hoje. A regra: só valem fatos de 1924, de janeiro a dezembro.
Um acontecimento de 1924…
O papel timbrado anunciava: Bureau de Recherches Surréalistes, escritório instalado no número 15 da Rue de Grenelle. A data: 12 de dezembro de 1924. O remetente: o poeta André Breton. O destinatário: o designer de moda Jacques Doucet, colecionador cuidadoso e com toque de Midas. A carta – hoje um manifesto das artes do século XX, linda que ela só – sugeria vivamente a Doucet a compra de uma tela de Pablo Picasso, Les Demoiselles d’Avignon. Assim, na letra miúda, quase tímida, em tom de respeitosa formalidade: “Caro senhor. Teria alguma dúvida sobre o julgamento que posso fazer sobre Les Demoiselles d’Avignon? (…) Entendo que lhe pareça desejável que o lugar a que esta pintura tem direito em toda a história artística moderna seja fixado por escrito (…) embora conceda geralmente proeminência à investigação poética quando se trata de determinar os rumos de uma época, não posso deixar de ver em Les Demoiselles d’Avignon o acontecimento capital do início do século XX”. Doucet, que não era bobo nem nada, correu para levar a tela do pintor de Málaga. O valor: 2.000 francos mensais, até completar 25.000 francos. Seria o equivalente, hoje, aplicada a inflação, a 3 milhões de euros. Levou o óleo sobre tela de 2,44 metros por 3,44 metros e, com ele, uma aventura da beleza ocidental.
Pintadas em 1907, no ateliê do Bateau Lavoir, na colina de Montmartre, em Paris, as cinco senhoritas passaram quase 30 anos à sombra, em eterno bruaá entre os poucos que punham os olhos no trabalho em visitas que faziam a Picasso. Raríssimas vezes o quadro foi mostrado publicamente, até que Doucet o adquirisse (ele o pendurou no primeiro lance da escada em art déco de sua casa) e, aí sim, depois, ganhou fama ao ser levado para o acervo do MoMA, de Nova York, em 1937. Nunca deixou de provocar escândalo, símbolo da gênese do cubismo, “o acontecimento capital do início do século XX”. A turminha mais próxima do pintor – o escritor Max Jacob, o poeta Guillaume Apollinaire e o crítico de arte André Salmon – batizou a obra, como piada interna, de “o bordel filosófico”. Era a abstração desconstruída de que tudo mudaria. Picasso queria mesmo batizá-la de “bordel”, porque a inspiração inicial fora um endereço de saliência no Carrer d’Avinyó, em Barcelona. Os primeiros esboços, aliás, mostravam um homem no centro da cena, entre as mulheres nuas, um outro entrando pela esquerda, ambos depois subtraídos. Os rostos distorcidos como máscaras africanas, Picasso emprestou de peças que Matisse tinha comprado em antiquários da Rue de Rennes, e que o espanhol viu pela primeira vez no apartamento da faz-tudo Gertrude Stein, nossa personagem do dia 28 passado. As figuras nuas bebiam dos banhistas de Paul Cézanne.
Camada por camada, foi como se Picasso juntasse os cacos do século XIX para inaugurar o século XX e nos trazer até aqui. Não haveria mesmo modo mais bonito de encerrar aquele ano de 1924 do que ver Les Demoiselles d’Avignon no catálogo de Jacques Doucet – atalho para fazê-la universal. Um outro trecho da missiva de Breton: “A questão da beleza só surge muito mais tarde e, mesmo assim, é apropriado citá-la com cautela. Les Demoiselles d’Avignon desafia a análise, e as leis de sua vasta composição não são de nenhum modo formuláveis. Para mim é um símbolo puro, como o touro caldeu, deste ideal moderno que só conseguimos captar em fragmentos. Misticamente falando, sempre, com Les Demoiselles adeus a todas as pinturas do passado”. Adeus.
… e um de agora
Com alguma dose de abstracionismo e pitadas de olhar cubista, não seria exagero imaginar as damas de Picasso, as eternas demoiselles, como as atletas da ginástica artística – e olho vivo hoje na final individual feminina. São as meninas de Bercy, mas sem o bordel, claro, como vimos no torneio por equipes de terça-feira. E sigamos na prosa: o que são Simone Biles e Rebeca Andrade senão figuras cubistas, em movimentos desconstruídos, mas precisos? Elas bailam como se saíssem do Bateau Lavoir. No início do ano, não por acaso, a romena Nadia Comaneci tratou de comparar a postura da dupla em entrevista para O Globo: “Biles tem habilidades incríveis, acrobáticas, que muitas pessoas não têm. Rebeca tem as acrobacias, mas é uma artista. Ela é como uma diva”.
Um outro modo de segui-las, para além da metáfora picassiana, para além do comentário de Nadia, é escutar a bela definição do diretor de teatro polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) sobre a arte da dança: “Ela se manifesta de maneira mais clara quando os pés dos bailarinos não tocam o solo”. Eis a leveza das ginastas em 2024, de mãos dadas com a agressiva sutileza das moçoilas d’Avignon de 100 anos atrás. O fim de tarde parisiense promete.
No episódio de domingo, 4 de agosto, as relações de Vangelis e da Carruagens de Fogo com o homem mais rápido do mundo